NAMORANDO NO CINE ANCHIETA
Antonio Carlos Vellasques
 
 

O romantismo anda em alta ultimamente. Isso está contagiando as pessoas de todas as faixas etárias, e eu não poderia ficar imune. Sempre fui bastante romântico.

Tenho lá meus motivos para ser assim, afinal não é muito comum encontrar casais que vivem juntos há tantos anos como eu e Suely. O romantismo, entretanto, não é um sentimento que nasce espontaneamente; qual um edifício, começa por uma base de afeto e respeito e vai sendo construído ao longo do tempo com tijolos de paciência e perseverança. Ninguém nasce romântico; a gente se torna romântico com o passar dos anos.

Próximo ao bairro onde morávamos em São Paulo havia um cinema. Na época a existência de cinemas em bairros era comum, não havia ainda nenhuma mente maligna engendrando transformar cinemas em igrejas ou estacionamentos. Bons tempos aqueles, de longa e saudosa memória. Era no escurinho do cinema que namoros prosperavam, planos eram arquitetados, promessas eram trocadas; havia é claro muita baixaria também, que ninguém era lá muito santo. Era só as luzes apagarem que as carteiras começavam a ranger, tudo movido a muitas bicotas e pipocas.

O Cine Anchieta era o ponto alto na região. Bem estruturado para os padrões da época - não tão sofisticado como o famoso Cine Ipiranga e outros do centro de São Paulo, onde para entrar era necessário trajar roupa social - o Anchieta era o local aonde levávamos as namoradas. Motivo de variadas brigas, era comum o sujeito encontrar lá a ex devidamente acompanhada. O jeito era sair no braço mesmo. E era para lá que eu às vezes levava a Suely. Chique.

O Brasil atravessava um momento muito bom nas artes. Todo jovem tinha na cabeça os últimos lançamentos nacionais. Era Glauber Rocha para cá, Massaíni para lá, Cacá acolá. Analisando friamente hoje esses filmes, a conclusão é de que a gente assistia um monte de porcarias. Nem sei se chegamos a assistir ao Terra em Transe do Glauber; com certeza não vimos senão a Suely teria me largado.

Quem de minha idade não assistiu ao menos quatro vezes seguidas ao 2001 – Uma Odisséia no Espaço? Verdadeira odisséia era assistir ao filme e tentar entender para que servia aquele totem preto. Teve gente que disse na época que o totem personificava um grande líder político que viria mandar no Brasil no futuro. O filme era profético: o Lula está aí para provar isso, temos o nosso totem.

Belo sábado fui à casa da Suely. Como ninguém tinha telefone – maravilha, nada de contas nem de Telecom – e na casa da Suely não existia nem campainha no portão, o jeito era jogar pedras no telhado para chamá-la. Deixei aquele telhado parecido com uma peneira.

- Você está louco? Meu pai já avisou que não quer ver você jogando pedras no nosso telhado! Toda semana ele tem que subir e trocar alguma telha.

- Legal! Manda ele colocar uma campainha aqui na frente. Ah, como você está linda!

- Aonde a gente vai? Não me diga que vamos de novo passear no museu! Ué, cadê o gravador?

Explica-se: eu não tinha nada muito sofisticado para ouvirmos música, apenas um gravadorzinho sem-vergonha da Philips que minha mãe havia tirado no Baú. E à falta de carro, o jeito era encarar um ônibus até o museu todo final de semana.

- Não, hoje eu vou levar você a um lugar muito especial. Vamos ao cinema.

- Cinema? Você sabe que eu detesto cinema!

Essas mulheres! Trinta anos depois eu ainda a levo a cinemas, apesar de nunca assistir a nada sem dormir no meio da projeção.

- Fique fria, broto, vamos ao Cine Anchieta. Esta semana está em cartaz um filmão, pelo que andei escutando. É um filme de suspense.

- Detesto cinema, e ainda por cima odeio filmes de suspense.

Entre resmungos e bufadas fomos nós pegar o ônibus até o cinema. Lá chegando entramos numa fila que dobrava o quarteirão. Não dava para ver o título do filme, mas num rabo do cartaz eu conseguia ler a palavra “cadáver”. Imaginei tratar-se mesmo de um filme policial da pesada. Comprei aos empurrões dois ingressos, sem me preocupar com o nome do filme, e entramos na sala. Mal entramos e as luzes começaram a diminuir. O filme ia começar, e nos aboletamos bem no fundo. Não havia mais lugar para um graveto, eu com certeza escolhera um filmaço para assistirmos.

Entre bicotas e pipocas só nos demos conta de que um filme estava passando naquele local depois de uns cinco minutos de projeção. O filme era maravilhoso mesmo, cenas de um realismo impressionante. Eu e Suely paramos com as bicotas e pipocas para prestar atenção ao filme, que a cada minuto ganhava em intensidade e profundidade. O filme era Esta Noite Encarnarei em seu Cadáver, de José Mojica Marins – vulgo Zé do Caixão.

Como disse, o romantismo é um sentimento criado a partir de pequenos gestos. Assistir a esse filme contribuiu com certeza para nosso relacionamento. E dizer que eu consegui levar minha namorada para ver esse filme! Uma santa!

A platéia estava estática, extasiada, perplexa. Num crescendo constante o filme ia arrebatando consciências, dominando corações. O cast de atores do filme era da mais alta qualidade, como costumava fazer o José Mojica, talentos contratados na boca do lixo. O homem era tão bom que hoje em dia é motivo de estudos universitários. Vive de palestras, o que prova que a cabeça do estudante contemporâneo merece ser analisada mais a fundo.

Lá pelas tantas, no meio de uma cena elaboradíssima em que alguns escravos estavam tendo suas línguas cortadas por um carrasco – o próprio José Mojica – um grito retumbou na primeira fila:

- Me larguem, me larguem! Eu estou possuída, me larguem!

Espichamos os pescoços para espiar o que estava ocorrendo. Uma mulher, aos gritos, tentava se livrar de quatro homens que a agarravam pelas mãos e pés. O cinema inteiro ficou em pé, as luzes começaram imediatamente a ser acesas. A coisa estava feia, do lugar onde nos encontrávamos no fundo da sala pouco se podia ver, e com tantas cabeças na frente podíamos apenas especular sobre o ocorrido. A gritaria continuou:

- Eu já disse para me largarem, estou possuída! Vou matar todo mundo aqui dentro!

Quando ouvimos nitidamente a palavra “matar”, demo-nos conta da gravidade da situação. A Suely nervosa começava a implorar para irmos embora. Creio que nessa hora meu bolso falou mais alto, afinal perder um filmaço daqueles – e os ingressos – não estava nos meus planos.

- Calma, broto, logo o lanterninha resolve isso e o filme recomeça.

- Filme, seu doido, eu não sei o que tinha na cabeça quando aceitei vir ao cinema! E ainda para ver uma porcaria como essa!

Eu encetava iniciar uma argumentação com Suely sobre o conteúdo moral e intelectual do filme quando um alvoroço começou na primeira fila. Alguma coisa quebrara com um estalido bastante alto e seco. O coletivo é motivo de estudos pelos cientistas.

Não sei como a coisa começou, mas notamos uma multidão começando a correr para os fundos da sala, que era justamente onde nós estávamos. E só havia uma única porta de saída, logo atrás de nós. Um pelote de gente amontoou-se imediatamente. Vi a viola em cacos. De um salto a Suely pulou algumas carteiras e me largou plantado. A turba vinha subindo derrubando poltronas e moendo o que aparecia pela frente, gritos para todo lado, empurrões e socos sendo trocados; mal tive tempo de reagir, levei um cala-brinco que me fez despertar e correr também. Perdido como sapo em quadra de bocha, acabei sendo carregado pela massa. Da Suely não vi nem sinal. Para piorar acabei perdendo um pé de sapato no meio do rolo, mas imediatamente achei outro. Era meio apertado, mas serviu.

O saldo da confusão foi catastrófico: derrubaram o que havia no saguão do cinema, arrombaram a porta de vidro, levaram de roldão até a roleta. Um engraçadinho roubou todos os doces, e vi um sujeito carregando o cartaz do filme! Devia ser algum fã do José Mojica. E eu tive que suportar a humilhação de chegar em casa com um pé de sapato de cada cor.

Mas aí é que reside o romantismo da coisa: eu e a Suely tivemos assunto para meses. Tornei-me um conhecedor de bons filmes de tanto discutir aquele grande sucesso do José Mojica. Por sinal nem ele é mais o mesmo: aviadou, cortou as longas unhas e deu de usar rabo de cavalo. Passei a estudar mais profundamente o cinema como arte, e oportunamente falarei sobre dois estrondosos sucessos que recomendo a todo mundo: Piranhas Voadoras, com o Cyborg, e Como Fazer seu Chefe Infeliz, com Cantinflas. Este último é um hit institucional.

A Suely só aceitou continuar namorando comigo com a condição de nunca mais irmos a um cinema. Pode parecer ingratidão de parte dela, mas no fundo, no fundo, faltou avaliarmos melhor a coisa. Passamos anos indo todo fim de semana ao museu, é claro que com o meu gravadorzinho sem-vergonha a tiracolo.