O VINGADOR
Luís Valise
 
 

Um cachorro se aproximou perigosamente, e se latisse eu teria que dar o fora rapidinho. Seguro a respiração, grudado à parede, imerso na sombra, mas ele me vê assim mesmo. Caminhando em minha direção, pára e abana o rabo, mas eu não estou para cafunés. Vocifero um “Passa!” tão raivoso que o bicho escafede-se escuridão adentro. Os ponteiros luminosos do relógio marcam uma e quarenta e cinco. Ele deve chegar a qualquer instante, e eu estou pronto para enfiar uma bala .38 na sua cabeça.

O seqüestro não fora tudo. A prepotência do marginal, a soberba, a certeza de que nada lhe aconteceria, tudo isso me incomodava mais que o medo da morte, a dor da pancada na cabeça, o horror no porta-malas trancado. O farol vermelho devia ter me alertado do perigo. Vermelho-ódio, vermelho-sangue, mas só pensei no sinal de trânsito mesmo, parada automática e obrigatória. E aí eles chegaram, saídos não sei de onde, um revólver encostou na minha cabeça, a ordem para destravar as portas, subiram três, dois atrás, um ao meu lado. “Dirija normalmente.” Eu só obedeci, e fui me afastando cada vez mais da cidade. Paramos numa rua de fábricas abandonadas, e ao sair do carro já fui levando socos na cabeça, rosto, costas. Caí. Pegaram minha carteira, cartão do banco. Pediram a senha. Eu disse. Tinha um carro velho, abandonado, parado perto. Abriram o porta-malas, me jogaram dentro. Amarraram minhas mãos com fita adesiva. Taparam minha boca e meus olhos, e avisaram: um ficaria no carro comigo, os outros iriam sacar dinheiro. Eu não devia dar um pio. E antes de fechar o porta-malas um me deu com a coronha da arma na cabeça. Mesmo de olhos vendados eu sabia quem fizera aquilo. Pela voz e posição do corpo, eu tinha certeza que fora o mais baixo, queixo quadrado, cabelo esticado na marra. Doeu muito, e por dentro doeu mais ainda. Na mesma hora comecei a pensar na vingança. Eu tenho boa memória, jamais esqueceria aquele rosto, o jeito de corpo, a voz. Muitas horas se passaram, eu sentia câimbras, sede, medo, vontade de mijar, daí escutei vozes próximas ao carro. Eles tinham voltado, começaram a mexer na fechadura do porta-malas, me aprontei pra levar mais porrada. A tampa abriu, começaram a puxar a fita sobre meus olhos, claridade, o dia amanhecera, farda. Polícia Militar. Me soltaram, pedi para urinar atrás do carro, olhei no espelho o galo na testa, feio, roxo. Na delegacia mostraram um álbum de fotos de assaltantes para reconhecimento. O puto estava lá, em foto colorida, com cara de coitado, mas não indiquei. Aquele cara era meu. Tinha que ser meu.

Meu carro foi encontrado dois dias depois, sem rádio. Eu comecei a dar voltas pelas redondezas do assalto. Passava devagar, esperto, sozinho, olhando quem estava nas ruas, em outros carros, nos bares. Até minha memória dar um estalo: o caraquadrada andando na calçada de uma avenida, abraçado a uma garota. Parei o carro e fui andando atrás, a boa distância. Pararam num ponto de ônibus, ficaram de beijinhos, até passar o ônibus que esperavam. Marquei o número do ônibus, corri de volta pro carro, e acelerei até alcança-lo. Fui comboiando, vendo quem descia. Desceram quase no ponto final, entraram numa rua de terra, depois numa casa pequena. Marquei bem o lugar, e voltei para a cidade.

Não foi difícil arranjar uma arma. Fui perguntando prum camelô aqui, outro acolá, até que um me disse que tinha um cunhado carcereiro que podia quebrar meu galho. Assim comprei um revólver preto com pouco uso, numeração raspada e tambor cheio.

Deixei meu carro no outro quarteirão. Estou perto da casa do caraquadrada, mocozado, esperando o puto chegar. Já estive aqui antes, ele não apareceu. Mas não desisto. Quero ver aquela arrogância de frente prum cano. Quero dar uma coronhada na sua testa com toda a força. Quero botar fogo no seu cabelo esticado. Só assim ele sairá da minha memória, e poderei dormir em paz. O cachorro se aproxima novamente, cheirando o ar, abanando a porra do rabo. Ouço o barulho de passos que se aproximam. O animal volta a cabeça para onde vem o som. Aperto o revólver na mão suada. Quando ele chega bem perto eu saio do esconderijo, braço esticado em sua direção. O revólver está quase encostado na sua cara. Ele pára, arregala os olhos, não dou arrego: meto-lhe uma porrada com a coronha nos cornos. Ele recua um passo, leva a mão à cabeça, e não chega a compreender o que se passa. Aperto o gatilho, um trovão de fogo ilumina a rua e entra na cabeça do filho-da-puta, que cai de borco. O cachorro se assusta, e se põe a latir. Eu me arranco sem olhar pra trás. Viro a esquina, dou uma corridinha, viro a outra e entro no carro. Ninguém na rua. Dou a partida, e sigo em direção à cidade. No caminho cruzo com um carro de polícia com a sirene ligada. Foda-se.

Pela primeira vez, desde o assalto, tenho um sono tranqüilo. Minha memória descansa. Preciso me livrar da arma. Durante o dia me sinto meio entorpecido, uma parte da minha cabeça revê a cena de vingança. Saio à tardinha pra tomar cerveja com os amigos. Muita vontade de contar o que fiz, mas não posso, não posso. Notam meu bom humor, eu só concordo, e mais nada. No outro dia eu compro o jornal. Direto na página de crimes, quero ver o presunto. Ele está lá. Quer dizer, está e não está. “Homem morto com um tiro na cabeça quando chegava do trabalho”. Tem a foto, o nome, foto da mulher chorando com uma criança no colo “Não sei o que vai ser sem ele”. Fico na dúvida: é ele ou não é? Minha memória tem certeza. Não se engana. Mas meu sono já não será o mesmo da outra noite.

Meu carro está parado depois da esquina. Estou num bar mal freqüentado, tomando cerveja. Deixei crescer a barba, minha camisa está muito amassada, não quero chamar a atenção. Nos fundos há uma mesa de bilhar. Alguns jogam, outros apostam. Um dos jogadores está de costas para mim. Seu corpo tem um jeito diferente, que me chama a atenção. Ao se preparar para uma jogada, fica de perfil. Tem o rosto quadrado. Minha memória chicoteia meu coração. Meu Deus, é ele! O revólver raspado está no porta-luvas do carro. Pago a cerveja, vou até o carro, entro, sento e espero. Uma hora ele vai sair. Eu não esqueço, não esqueço...