SOBROU APENAS O GATO SABUJO
Luiza Aparecida Mendo
 
 

Alcides passou a noite toda rememorando sua vida. Não a vida toda, mas a vida que tinha mudado todos os rumos de sua existência feliz e que havia começado naquele jogo de buraco, na casa de Elisabeth. Se tivesse consultado uma cartomante ou um astrólogo, talvez tivesse impedido aquela desgraça. Qualquer pessoa, mais flexível que o engenheiro técnico assistente da Usina de Concretagem, seria capaz de prever que “aquilo que se iniciava com um jogo chamado buraco, só podia acabar mal.”

Carta vai, carta vem e a coisa foi indo cada vez mais para baixo. Um rei descartado e um olhar matreiro; uma rainha comprada com ares de malícia; um roçar de joelhos daqui e um trejeito maroto de lá. Agora Alcides lembrava-se de onde vinha aquela sensação de coisa conhecida, que sentiu diante da cena que se desenrolou diante de seus vinte e oito anos de ingenuidade. Tudo estava claro, como o dia. O jogo que ele e Elisabeth jogaram era, sem tirar, nem por, o mesmo jogo que o gato Sabujo jogou com o jovem e ingênuo pardal no jardim de sua meninice. Castigo? Alcides soube, desde o início, o desfecho do jogo do Sabujo, mas nada fez para espantar o pardal e depois ficou a olhar, displicente, o gato lamber os bigodes, satisfeito e agradecido.

Elisabeth, nem era bonita, não passava de uma mocinha comum querendo casar com um homem comum. Esperta como ninguém, ia ganhando no jogo, sem perder a sorte no amor. Casaram.

Dia vai, dia vem e Alcides, mergulhado no concreto da Usina, perdeu o gosto pelo jogo, mas toda sexta-feira, pontualmente às vinte horas, chegavam Silvana e Leonardo, os velhos parceiros e, na falta de Alcides, Jorginho, o irmão mais novo de Silvana, um pirralho sem barba na cara, assumia a dupla. Descarta rei, compra rainha, eis o jogo, eis o buraco.

Alcides decidiu apagar de sua mente tudo o que havia se passado, desde aquele primeiro jogo na casa de Elisabeth. Antes do Sol nascer já havia picotado tudo dentro do apartamento, documentos, cartas, fotografias. A carteira de identidade fez questão de queimar.

Saiu de casa sem levar mais que a roupa do corpo, só por decência. Não era homem de vingança, nem mesmo faria por necessidade como o gato Sabujo. Era um homem íntegro. Empenhou-se tanto em apagar as lembranças, que em alguns anos já não sabia, sinceramente, o nome da própria mãe. Vivia feliz à beira mar, salvando vidas e para os companheiros ele era apenas Sabujo, a única coisa que sua mente guardou.

Dia vai, dia vem, pois o tempo não para, de seu posto, viu um homem se debatendo nas águas revoltas do mar. Era só mais um. Saltou como um gato e, num segundo, estava ao lado do infeliz. Coisa estranha!

Lampejos de luz vermelha pipocavam em sua cabeça, som de pedras moendo, caras e bocas que não se formavam. Ficou ali inerte, sobre as águas, vendo o pobre homem descer e subir e descer novamente, como se houvesse sob ele um imenso buraco. Outros vieram e o socorreram, não era tão incomum o salva vidas ter problemas com os afogados que se debatem demais. Foram levados para a praia, o salva vidas e morto.

Sabujo olhou o infeliz e não reconheceu aquela cara sem barba de outros tempos, também não conseguia explicar aquela vontade absurda de lamber os bigodes, satisfeito e agradecido.