TORRESMO E PINGA
Zeca São Bernardo
 
 

A noite promete, murmurou José de trás do balcão de seu botequim, olhando o homem vestido de papai Noel cozinhando, literalmente, entre os veludos de sua roupa. Em quase vinte anos de São Paulo, há de se dizer, já vira um pouco de quase tudo que há para ser visto. Fato é que colabora muito a localização de sua pequena empresa na chamada Boca do Lixo paulista, onde disputas de travestis pôr namorados são mais que comuns e donde, todos os dias, assistia as mulheres da vida começarem a ganhar a vida mais cedo e lhe acabar a própria cada vez mais cedo. Suas andanças pela cidade foram poucas, de uma obra em outra logo que chegou, de um cortiço á outro durante os anos que serviam-lhe de casa e por fim adquirira o bar. A preço de uns trocos, como costumava dizer, pois o conterrâneo que vendeu-lhe estava de partida para sua terra.

Mas estas coisas pouco ou nada tem a ver com essa narrativa, são mais para ilustrar á quem lê-la o estabelecimento com suas garrafas cobertas de poeira sobre o balcão, o piso vermelhão (herança do primeiro dono) e conduzi-los ao shopping recém aberto duas quadras abaixo. Donde supunha nosso amigo Cidão (nunca explicar-se-á o fato de como surgem os apelidos, só cabe-me dizer o trocadilho reles e dado sem troco ou preço certo de que não sei se si dão ou se dão-se ao préstimo de substituir os nomes no gosto popular, que diga-se de passagem não é dos mais refinados) que vinha o papai Noel, mui provavelmente em sua hora de café.

Em que posso servi-lo?- perguntou desconfiado. É... a noite vai ser longa, comentou o velho, vim pedir-lhe um petisco mas já vou avisando que esqueci a carteira na outra roupa! Portanto, se o amigo puder me fiar um torresmo e uma pinga, passo aqui qualquer hora e acerto a conta.

Sim, sim, claro... era só o que me faltava, além de nunca ter ganho nada de papai Noel sou forçado a fiar-lhe um petisco e uma branquinha, disse José sorrindo mais para si do que para o outro. E já pondo no prato o torresmo e servindo a dose no copo.

Esfomeado o velho devorou o torresmo, engoliu sua cachaça e balbuciou: já ocorreu-lhe que ele pode ter se atrasado?

Ele quem? Questionou José já preocupado com outro freguês que vinha a pedir-lhe encomenda de uma buchada de bode.

O papai Noel, claro. Sei lá, pode ser que no caminho tenha comido algo que lhe fez mal... ou não muito bem, já com aquela idade toda, borrou-se nas calças todo - o coitado - e nisso desviou-se do caminho não lhe entregando seu presente.

Sei, sei, falta dizer que comeu um torresmo em algum lugar? - mas isso já disse-o para o nada, pois tinha se ido o velho embora. Sob o balcão repousava tranqüilo um pequeno pacote de presente embrulhado numas folhas que há muito não se vê no mercado.

Cores de infância, murmurou Zé ao abri-lo no final do expediente e lá deparou com um pião - chamado em sua terra de flor de goiabeira nome que nunca saber-se-á de seus pôrqueres uma vez que é feito de peroba e que goiabeiras não dão piões como fruto ou flor -junto com um cartão velho, amassado e sujo pelo tempo com a seguinte mensagem: perdoe-me o atraso, foi um dia cheio e um petisco mal feito doeu-me a barriga.

Sorrindo, Zé anotou na comanda: papai Noel, uma pinga e um torresmo em letras garrafais e bem pequenininho, perdoado.