O TEMPO DE UM SORRISO
Luiza Aparecida Mendo
 
 

Eram quinze horas, de um dia ensolarado, quando ele nasceu. Não uma tarde como outra qualquer ou um sol como de costume. A cidade era um quadro de rara beleza, as espumas louras do mar lambiam a areia, cada vez mais próximo da murada e as embarcações dançavam sobre as águas, ali deixadas por segurança. Ninguém saia ou chegava. A vida estava em estado de alerta e a defesa civil de prontidão.

Míriam quase nem teve tempo de se preparar, quando deu conta estava na ante-sala do pequeno hospital da vila, tentando acalmar o menino que gritava por sol.

Desde que havia descoberto a gravidez, aquela jovem mãe, abandonada pelo navegante desconhecido, experimentava a paz e a candura de uma santa. O desprezo esperado da família, havia se mostrado como doce conivência e a comunidade toda parecia disposta a render graças eternas ao pequeno. Coisas de vilarejo, cuja novidade maior não passa de um peixe de rabo diferente, ou uma embarcação nova, que se perde naquelas paragens e depois vai, deixando estórias de outros lugares.

— Há uma luz em torno daquela menina — diziam as velhas rezadeiras e os homens se curvavam respeitosos à sua passagem.

Ninguém sabia quem era realmente aquele pai. Um estrangeiro qualquer, como tantos outros que vêm e vão ao sabor das estações. Chegou em silêncio e em silêncio partiu, deixando o fruto de sua incógnita a encher de esperança aquele pobre povo de beira-mar. Alguns diziam tratar-se do próprio Netuno, feito moço bonito; outros preferiam acreditar numa estirpe real, da própria humanidade. Um príncipe estrangeiro que não disse palavra, por não saber proferi-la. Soubesse de sua cria e teria voltado!

A tempestade ameaçou a noite toda e pela manhã o vento levantava as ondas, mas o sol não arredava pé. Ninguém saiu para o mar. Alguns ficaram no cais, esperando a melhora e outros se prostraram diante da casa da menina Míriam, pois os tempos eram chegados. Quando a mãe e o filho saíram para o hospital, nos braços do Capitão e de sua mulher, a rezadeira, toda a corja os seguiu, como cães famintos de luz. Enquanto o menino gritava na sala improvisada ao parto, os homens maltrapilhos e as mulheres maltratadas gritavam de alegria pelo futuro que rasgava os véus. Era chegada a hora. Ele era lindo.

O velho médico embriagado mal conseguia distinguir o sexo. — Parece que é um menino! — disse com as palavras dançando, nos lábios descontrolados e o virou de cabeça para baixo, deu-lhe um tapa e quase o deixou cair no colo da mãe que, desesperadamente, estendia os braços, na pressa de tocar o fruto do seu ventre.

Aconchegado no colo da mãe o menino, antes mesmo de ser higienizado, enfrentou a maratona da visitação pública, que a enfermeira dava um jeito de organizar.

— De três em três. — ia empurrando cada um deles para fora, pois todos que entravam queriam ficar. Ele era lindo!

O rostinho corado, de anjo barroco, igual aos do teto da velha capela, pintados pelos escravos dos tempos da monarquia, resplandecia pela luz azul de seus olhos profundos e o sorriso parecia esculpido.

Eu cheguei tão perto, que quase pude ouvir sua respiração tranqüila, como um sussurro. Ele sorriu. Embora seu sorriso parecesse eterno, para mim ele sorriu um pouco mais. Alguma coisa além do sorriso. Um segundo de aprofundamento místico de um sorriso que traz as estrelas do céu para a Terra. Ele era lindo.

Foram trinta e dois minutos de visitação e de vida. Exatos trinta e dois minutos. As pessoas iam passando e sendo empurradas para longe daquela candura e quando o último passou diante dele ele fechou os olhos, cobrindo com grossas cortinas aqueles sois azuis.

A tempestade enfim desabou sobre a cidade e sobre o mar, as embarcações se batiam e se deterioravam e as lágrimas se misturavam com a chuva ácida que descia das pesadas nuvens negras. O sol negou-se a iluminar aquele resto de tarde.

Perdi, totalmente, o medo da morte e fiquei no cais açoitado pelas ondas. Havia o sussurro do mar e aquele sorriso.

Muitas vezes ouvi falar do amor e tantas outras lamentei nunca tê-lo encontrado. As paixões vieram e foram e nenhuma tornou-se amor ou dele se abeirou. Busquei, a vida toda, o amor físico dos homens “até que a morte os separe” e mesmo esse jamais achei. Agora essa sensação de amor profundo e eterno.

Ninguém era mais o mesmo. Eu olhava as pessoas e via aquele sorriso e sorria aquele sorriso para os homens, para os animais e para o mar. Eu era aquele sorriso. Por que?

Antes mesmo que a tempestade acalmasse, o Capitão pegou o barco, com a rezadeira e a menina Míriam. Dizem que foram levar o menino morto para o pai. Nunca mais voltaram ou se ouviu falar de qualquer um deles e no entanto nunca mais deles nos esquecemos.

Olho cada segundo da minha vida com aqueles mesmos olhos azuis, que me olharam naqueles segundos efêmeros. Vejo no rosto de cada homem maltrapilho e de cada mulher maltratada, pela rudeza da vida, aquele mesmo sorriso e sei que não sou o único a amar, tão profundamente, aquela luz que passou rápida como um relâmpago sobre a imensidão do mar. Eis o amor que eu buscava!