FÉZINHA NO BICHO
Claudia Sanzone
 
 

Tudo ia muito bem numa certa ilha do Pacífico: brisa fresca, mar azul de água transparente e céu absolutamente livre. Um paraíso. De repente surge um réptil enorme. Os dentes eram voltados pra fora e, se o bicho e o momento não fossem tão assustadores, daria até pra perceber que esse detalhe na dentadura da criatura fazia lembrar o rabugento, dos desenhos animados. E ele se aproximou rastejando, com passadas demoradas e gingando em câmera lenta. Chegou muito perto, virou-se de lado e fez um movimento brusco com a cauda robusta. A bocarra já estava escancarada.

O professor acordou aturdido por causa desse pesadelo horroroso. Revirou-se várias vezes na cama, mas não conseguiu dormir mais. Impressionante aquele sonho! Viu que faltavam cinco minutos paras as seis e resolveu se levantar. Estava moído e pensou se o sonho não queria dizer alguma coisa, se não seria uma espécie de aviso. Ah, tudo bobagem!

Antes de sair para o colégio, contou resumidamente o sonho à esposa. Ela queria saber detalhes, mas os alunos certamente já o esperavam, pelo adiantado da hora. Disse que voltaria para almoçar em casa e aí conversariam melhor.

Ao meio dia e cinco retornou à casa. Então, enquanto mastigava devagar, foi repassando calmamente os acontecimentos do sonho à mulher. Infelizmente alguns pormenores já não eram tão vivos a essa altura do dia, porque os sonhos vão se desbotando à medida que as horas passam. Mas o essencial estava descrito ali na narrativa. A esposa não só concordava com ele como realçava a idéia de que o pesadelo não deveria ter sido nem ficar em vão. Na pior das hipóteses, valia uma fezinha no jogo do bicho.

A mãe da esposa, sogra do professor, fora apostadora costumaz do jogo do bicho quando era solteira. Largou o hábito por causa do marido: advogado sério e moralista, abominava jogos de azar, principalmente os ilícitos. Só que o tempo não esmoreceu as manhas que a sogra adquiriu enquanto era praticante da jogatina. Sabia ainda hoje muito bem como chegar aos palpites baseada na significação de sonhos, visões ou acontecimentos mais carnais. Das combinações e possibilidades numéricas de jogo ainda se recordava perfeitamente.

O professor gostou da idéia e decidiu que apostaria no crocodilo. A esposa prontamente o acudiu: avisou que não existia crocodilo no jogo do bicho. Então ele replicou que o animal do sonho era exatamente um crocodilo, pois não possuía membranas interdigitais e os dentes protrusos identificavam a espécie. Ela nem ousou argumentar, uma vez que sabia a inutilidade que seria discutir um assunto desses com um professor de biologia.

Depois de ser informado pela mulher que o jacaré, este sim, pertencia ao grupo do jogo em questão, levantou-se da mesa para fazer a aposta. Mais uma vez a esposa o deteve. Explicou, baseada nas histórias que a mãe dela contava, que em se tratando de jogo do bicho e ao contrário do que apregoava o siciliano Pirandello, quase tudo o que parece não é. Disse a ele que era necessário fazer uma interpretação do sonho todo, relacioná-lo a números e só então fazer a fezinha. Avisou também que o palpite deveria valer para três dias seguidos.

O professor passou a mão pela cabeça, franziu o rosto e viu as horas. Já estava começando a achar aquilo tudo complicado e extenso demais para um joguinho à toa, e ilícito ainda por cima. Mas mesmo assim respirou fundo e decidiu que iria levar a coisa adiante. A esposa sugeriu que ele consultasse a sogra dele, que era, sem dúvida, pessoa mais indicada que ela pra dar um palpite quente.

Ocorre que o professor vivia às turras com a senhora sua sogra. Sem falar que depois ia ter que aturar a criatura pedindo pequenos favores em troca. Insistiu um pouco mais com a esposa, pedindo que palpitasse alguma coisa. Chegou a ser apelativo, mas ela se negou. Implorou, então, que ela pelo menos explicasse mais ou menos como era o esquema da aposta. Irritada com a percepção de que a insistência dele era motivada pela recusa em contatar a mãe dela, mandou o marido se virar como pudesse lá na banca do bicho.

Assim ele o fez. Mas o apontador da banca da esquina falava enrolado, usava um jargão esquisito e tinha o raio do dente torto, à semelhança do diabo do crocodilo que precisava ser transformado em jacaré pra ver se valia alguma coisa naquela porcaria daquele jogo. Pensou em desistir daquela merda. No entanto, respirou fundo, procurou se acalmar e prosseguiu. Disse ao homem que queria apostar cinco reais no jacaré. Ah... pra quê?! O senhor franzino sentado do outro lado da mesinha, cumprindo seu papel, queria saber exatamente o esquema da aposta. Como o professor desconhecia completamente as manhas do jogo, começou a respirar curto. Pressentiu que uma vez que não desistira, dali não sairia tão cedo.

Foram três horas de debate. Repassou mais uma vez o sonho ao apontador do jogo, mesmo sabendo que a essa altura só transmitia um débil esboço do pesadelo. Impressionante a variedade de possibilidades sugeridas por aquele senhor de dente saliente: crocodilo não poderia dar jacaré, porque era óbvio demais; bicho que se defende com o rabo pode ser veado; uma criatura grande e robusta ficava entre cavalo, leão e touro; a viradinha de lado pendia para pavão; a boca grande, apontava para o tigre; se saía do meio do mato, podia ser coelho ou borboleta; quem faz crocodilagem é amigo urso ou um baita cachorro; se o bicho era rastejante, então isso daí é cobra.

A cabeça do mestre fervia. Preferiu ficar com o jacaré mesmo. Mas agora vinha o segundo round. O velhinho de fala enrolada queria saber sobre números, falava em dezena, milhar e num tal de dupla de grupo. Tinha também um negócio de com ou sem repetição. Também podia ser invertido e cercado pelos sete. O professor foi a nocaute.

No desfecho dessa pendenga toda acabou deixando uns cem reais na banca. Voltou pra casa duro, com a consciência pesada por ter abandonado os alunos do turno da tarde e pau da vida porque a resistência idiota de não ter recorrido à sogra fez com que ele abrisse mão de cem contos assim, molinho. E ainda martelando a dúvida de que certamente não viria um realzinho daquela aposta doida: um conjugado inventado pelo apontador do jogo, que incluía jacaré e cobra – confessou intimamente que a idéia da inclusão do ofídio era dele mesmo e tinha a ver com a sogra – e que valeria para três dias seguidos.

Três dias depois voltou lá na banca pra pegar os resultados de cada dia, todos de uma vez logo. Quando chegou à casa a sogra estava lá. Ele mesmo passou os olhos naqueles números, conferiu com os canhotos da aposta e ficou na mesma. Não tinha jeito, era hora de pedir socorro à cobra.

Ela olhou os resultados, comparou-os com as apostas e fez uma expressão de espanto absurda, impressionante. Cheio de esperança, o professor interpretou – já se sentia capaz disso! - aquela reação como um inconformismo da sogra com a vitória dele. Decerto quebrara a banca e ganhara uma baba! E a mãe de sua mulher ia ter que engolir a astúcia e a sorte dele, um tremendo cagão por si só, sem precisar de uma única ajudinha sequer dela, tão experiente no assunto.

A sogra desprendeu os olhos do papel e olhou para o genro, ainda espantada: em vários anos de apostas no jogo do bicho durante sua mocidade, nunca tinha visto uma repetição do mesmo bicho em três dias seguidos... O professor, que mal conseguia se conter de tanta euforia, desfez de súbito a cara de todo convencido, quando a sogra finalizou:

- Impressionante, deu burro na cabeça três vezes!