O JACARÉ
OU O CROCODILO
Doca Ramos Mello
 
 
Como dizer o que vou dizer...? Bom, na bucha é melhor: em casa, temos um lagarto de estimação. Pronto, falei. E agora vocês já podem me olhar com aquelas caras que variam desde o significado de louca perene até a minha identificação como pessoa de pouca higiene, ai de mim...

Mas, não é nada disso, apenas um lagarto.

Se bem que essas coisas assim mais ecológicas acabam se transformando em sérios problemas quando recebemos aqui em casa os nossos queridos visitantes paulistanos...

Ao tempo ainda do meu raro semancol, quando eu não imaginava os danos grandes que poderia causar a aparição de um lagarto diante das visitas, lembro de ter levado um casal até a grade da piscina para mostrar aos dois todo o esplendor de Ilhabela deitada sobre o mar azul na maior pose de estrela de cinema – Ilhabela é assim como uma Greta Garbo, em especial para nós que a admiramos daqui, do outro lado do canal. Estou lá eu, a discorrer sobre as maravilhas do litoral e patati-patatá – o caiçara é sempre muito orgulhoso, mais ainda o neocaiçara adotado pela terra e pela gente destes mares onde moro com a graça de Deus -, quando sinto um arfar de respiração, volto-me para a moça paulistana e vejo-a totalmente verde, a boca torta na tentativa de dizer alguma coisa e o dedo em riste, balançando na direção de algo que queria apontar. Julguei que a pobre tivesse ficado embasbacada com a beleza sem par de Ilhabela, ainda mais porque fazia um sol enorme, o mar estava prateado e...

Mas, o arfar foi engrossado perigosamente, o marido da moça também me pareceu suar demasiado, então acompanhei a direção apontada pelo dedo branco da moça e eis que vejo o lagarto de casa ali, estirado no chão, em seu banho de sol, lagarteando na maior cara-de-pau, ai, isso é coisa que se faça no nariz das visitas?! Logo ele, sempre tão discreto, eu diria até mesmo reservado, desconfiado, porém comecei a entender naquele dia o quanto a convivência com os humanos pode modificar o caráter dos bichos e então, lá jazia o lagarto, na boa, vai ver até querendo bater um papinho com o casal, e aí, como anda São Paulo, muita poluição, e o trânsito...? A aparição foi o que bastou para que a moça tivesse um peripaque e saísse de minha casa sem se despedir de nós. Nunca mais mandou notícias, mas eu fiquei sabendo que voltou para sua garoa naquele mesmo dia, injuriada com a minha indelicadeza, falta de higiene e loucura, eu tenho um jacaré – crocodilo, crocodilo, conserta o marido - enorme no quintal de casa e ainda exibo para as visitas como se fosse assim um poodle branquinho de pelagem tosada em clínica de grife, francamente, que nojo completo, aquele bicho gigante de casca grossa, um narigão, boca larga, as patas imensas, um horror, credo!

O paulistano é uma pessoa muito urbana. Quando ele vem para o litoral, costuma correr antes que o sinal fique vermelho p’ra ele e não gosta de esperar a pizza ou a sua vez no caixa do Supermercado Pão de Açúcar, local mais freqüentado pela turma na temporada de praia. Impressiona o amor que eles têm pelo Pão de Açúcar, a família Diniz deve ser-lhes muito grata porque eles abarrotam a casa e ficam lá falando alto como quem canta no chuveiro, é uma beleza. Vai ver também, quem sabe, façam isso apenas para atenuar a falta que sentem de um bom shopping, paulistano adora shoppings e nós aqui temos assim umas lojinhas agrupadas, quando muito, não dá para comparar.

Um simples pernilongo é capaz de ensejar comentários paulistanos irados sobre como a prefeitura local não cuida dos munícipes, como a saúde está em situação precária por aqui e esses bichos enormes passeiam pela cidade sem controle, cada pernilongão assim, ó, quase um dinossauro, gigante... É uma atitude em total discrepância com o nosso próprio comportamento caiçara: nós também não morremos de amores pelos pernilongos, especialmente quando se dedicam à música em nossos ouvidos, mas damos uns tapas neles ou recorremos aos inseticidas sem fazer drama – estamos habituados. Os borrachudos, por exemplo, angariam em massa o ódio paulistano, porém a gente aqui liga pouco para as mordidas – nós somos anestesiados.

De modo que o paulistano vem p’ra cá doido de saudade do 18º andar, ele adora elevador, ascensorista, câmera de vigilância. Já nós raramente temos uma jaula daquelas que sobem e descem carregando mercadoria humana, conosco é na escada mesmo e fim de conversa. Bom, temos agora um prefeito afinadíssimo com as necessidades do turista, de modo que mandou instalar câmeras pelo centro da cidade, a gente passa por elas e dá tchau, porque nós somos completamente idiotas e achamos graça na coisa. São as diferenças do modo de vida de cada um, é muito natural isso e nós aqui somos mesmo primitivos às vezes, perdão, mim Tarzan, you Jane. Vejam vocês que eu mesma mantenho uma bananeira no quintal e outras árvores frutíferas, mas já faz um tempo que não as exibo em especial para as crianças paulistanas porque elas acreditam que as frutas nascem nas caixas do Ceasa e longe de mim tirar a fantasia infantil de alguém...

Voltando ao lagarto...

Ainda antes do copo de água com açúcar, a maracujina, a erva cidreira, tentei explicar ao casal que meu lagarto não fazia mal nenhum a ninguém, para tirar-lhes o medo, o que só fez aumentar a tremedeira da dupla, e a moça verde gaguejava jaa-jaa-ca-rééé, enquanto o marido, irado, dizia não, não, é crocodilo, meu São Basílio! Algumas vezes é difícil prestar esclarecimentos, né não? Mas, naquele momento, agradeci aos céus por pelo menos meu marido não estar em casa, ele gosta de brincar com essas coisas, poderia parecer até deboche... E, com certeza diria ah, sim, é um jacaré-açu, minha senhora, amazônico e carnívoro, com preferência por peles claras cevadas no 18º andar, mas só come pés e canelas, sossegue, hehehe...

Depois disso, toda vez que recebo paulistanos, antes de mostrar-lhes a beleza descortinada de Ilhabela a partir da piscina de casa, peço uma licencinha e vou lá fora conferir por onde anda o lagarto. Se o pego fora da toca, dou uns berros, canto um trecho de música sertaneja (até ele não suporta!), passo ordem, o bicho se esconde e então o campo fica limpo. Prevenir é sempre melhor.

Mas foram muitos os perrengues ao longo dos anos. Antes deste lagarto atual, havia outro que gostava de se deitar na grama do jardim da frente de casa, a situação era muito pior porque eu nem sabia onde ficava sua toca, aquele não era meu, ele entrava por debaixo do portão da garagem, era uma audácia, e, de repente, lá estava, olhando para dentro da sala. A única coisa que me ocorria era postar-me diante da porta, a bater o pé para espantar o bicho, o que algumas vezes me valeu umas perguntas do tipo: Está sentido alguma coisa?” ou “É dança da chuva?”

Tenho a história de uma perereca branca também, mas nem vou contar agora para não deixar você aí assustado.