SOBRE A LINHA DA VIDA
Eduardo Prearo
 
 

Enganou-se sobre si mesmo e agora vê que não tem a quem perdoar. A paz partiu porque parece que ele deve algo a uma populaça desconhecida e naturalmente sempre certa. Zombam dele, mas talvez esse zombar seja uma forma de amar.

Hoje é quarta. Ainda é quarta. Lembra-se de que de manhã foi a um supermercado comprar adoçante e a caixa ficou alguns segundos remexendo os chocolates. Ah, está privando-se destes, hein?, deixa até eu arrumá-los. Lembra-se de que esqueceu de ir trabalhar; achou que era por causa de uma mulher, uma revoltada contra ele. Lembra-se do meio-dia, quando se enojou de si mesmo, quando procurou uma lixeira pública para jogar o maço de cigarros vazio e não encontrou nenhuma ( e jogar algo em lixeira privada é sempre arriscado ). Lembra-se do início da tarde, quando resolveu ir se confessar mas de súbito desistiu, antevendo o que o padre diria. Lembra-se de que pensou que jamais teria um cartão de crédito e de que não foi abordado por ninguém para fazer um empréstimo ali na rua dos desempregados. Lembra-se de quantas vezes o chamaram de senhor e os segundos em que odiou o tempo e os cigarros. Lembra-se de que por volta das quatro alguém lhe perguntou por que ele fazia sempre cara feia. Nesse mesmo horário, pensou nos que saíram a tempo do país ( esses sim foram inteligentes; mas ele, já quarentão e isolado, pra quê sairia? O poço era mui alto para um sapo como ele). Lembra-se dos policiais que o olharam, sussurrando a palavra punição, e que chegou ao lugar onde mora por volta das sete da noite. Lembra-se de que o celular vibrou por volta das sete e trinta: era um dos melindrosos dizendo que estava havendo um evento fechado em um bairro nobre e que estava todo mundo entrando. Mas olhe, disse a voz, tome cuidado com aquela mulher considerada doce pela sociedade e que jamais será punida pela vida. E tenha mais traquejo social, meu caro. Você é muito tímido, introvertido, etc, etc, etc..., completou. Lembra-se de que preferiu ficar vendo TV e lendo a sair naquele momento imediatamente após a ligação (mesmo com vozinhas lhe dizendo: não tem cultura!, não tem cultura!).

Hoje é quarta. Ainda é quarta. Vinte e três horas e cinquenta e seis minutos. Resolve sair, mesmo sabendo que o isolamento persistirá. Estou com mau-hálito?, pergunta-se, já de terno. Sempre estou, responde para si próprio. Escova mal os dentes, abre um chiclete de menta diet, começa a mastigá-lo enquanto contempla a figurinha que vem anexa à embalagem da goma: um crocodilo imenso!, e que pode ser tatuado. Tatua-o, enfim, na palma da mão direita, sobre a linha da vida, e sai. Está tudo certo!