DESCENDO O RIO
Zeca São Bernardo
 
 

Ás coisas são assim...vejo meu filho brincando pela casa e lembro das histórias do vovô! Parece que foi ainda ontem mas, já se passaram quase quarenta anos.

Sim, isso mesmo, quarenta longos anos e muitas, muitas mudanças de endereço separam-me de meu passado. Separam-me das histórias( ou serão estórias?) de família.

Lá, no passado, lá em São Bernardo ficaram a mesquita, as orações da seis, o chamado do muaezim sempre pontual e aquele pôr-do-sol magnífico que nunca, nunca vou esquecer.

Entre uma palavra e outra em português o velho me contava sobre sua terra! Sobre como eram tão belas as águas do Nilo ancião, provedor da vida pelas gerações a fora que ocuparam a cidade sagrada de Akenaton. O faraó poeta morto pelas mãos sujas de seus sacerdotes.

Falava-me dos crimes e heresias que sua majestade cometeu... seu clero não podia conceber, não podia aceitar ao menos que só há, havia e somente haverá um deus único. Entre outras coisas Akenaton proclamou-se filho desse deus único e seu legitimo representante na Terra!

Tirando a semelhança com a pregação que veio séculos depois e até hoje me intriga( diga-se de passagem que o velho avô só contava as histórias e dizia-nos concluam o que quiserem ou, em dias de mau humor, entendam se puderem), penso sempre nos crocodilos.

Em suas histórias figuravam como ancestrais dos reis e rainhas antigos, de um tempo perdido, de homens que criam na reencarnação e que seus entes queridos poderiam voltar a vida sob a forma de animais.

Sim, crocodilos, o Nilo, o deserto, a rua da mesquita principal do Cairo, as pirâmides, os faraós, as rainhas, as águas, a vida e a morte num ir e vir infinito. O veneno, a adaga, as múmias e tudo aquilo que sei que nunca vou ver. Trinta e poucos anos, sem dinheiro, quase sem sonhos, sem trabalho, só, cansado e ainda assim muito feliz!

Tenho o sorriso do miúdo- como se diz lá em Portugal iluminando meu próprio deserto- tenho as histórias do vovô na lembrança. E um jacaré de plástico comprado na lojinha de lembranças do zoológico paulista que me dá muito trabalho. Pois não sei se meu filho não quer entender a diferença entre um jacaré e um crocodilo ou se sou eu que não consigo explicar.