CHÃO BATIDO
José Luís Nóbrega
 
 

No início foi assim. Acordava às cinco horas da manhã, cortava madeira, fazia o café no fogão de lenha, acordava os quatro filhos, que ainda com os olhos remelentos, comiam polenta com leite e açúcar. Ela então pegava os quatro bornais, verificava se em cada um deles havia um caderninho amarrotado, um lápis (olhava com atenção a ponta do lápis para se certificar se estava apontado), uma borrachinha carcomida pelos anos de uso, ia até o pomar, voltava trazendo mexericas ou bananas que também eram colocadas nos bornais dos filhos. Um beijo em cada um deles, um aceno de mão quando os rebentos já estavam na estradinha de terra batida. Voltava pra cozinha, também de terra batida, balde na mão esquerda, ia jogando com a direita água no chão de terra, pisando em seguida sobre o molhado para deixar o chão lisinho, lisinho.

As crianças só chegavam para o almoço depois de uma da tarde. Olhinhos no fundo, cansaço mais pela longa caminhada de volta do que pelas aulas matinais. Mais lenha no fogão e o almoço estava pronto. Comiam com a mãe na mesinha de madeira com seis banquinhos. Não conversavam à mesa – falta de educação - ensinara a mãe. Terminado o almoço, iam as crianças para um cochilo no quarto, enquanto ela lavava a louça no tanque, depois voltava para a cozinha com o balde na mão esquerda, água atirada na terra com a direita, os pés a socar o chão que para todos naquela casa, era o chão da cozinha mais liso de toda a colônia daquela fazenda.

À tarde, brincadeira das crianças no terreiro de café. Antes do jantar os quatro à mesa fazendo lição de casa, depois a refeição: sopa de legumes com pão caseiro. Às nove todos estavam na cama, descanso para um novo dia que viria antes do Sol nascer. Lamparina apagada, em instantes, o sono dos justos...

A mudança para a cidade grande traria mesmo mudanças. A mãe passou a acordar às sete da manhã, meia hora antes da entrada dos filhos na escola. Não precisava mais cortar lenha. O gás de cozinha era recebido mensalmente através de uma ajuda do governo. Os bornais foram aposentados, sendo substituídos por quatro bolsas doadas também pelo governo (nos finais de semana o marido pegava uma dessas mochilas para colocar a chuteira, shorts e camiseta para a pelada com os amigos). Dava ela uma verificada se tudo estava lá dentro: dois cadernos (um doado pelo Estado, o outro doado pela professora), três livros também recebidos da escola, uma lapiseira e duas canetas. Não precisava colocar nada de alimento ali, já que a merenda da escola seria suficiente para as crianças ficarem sem comer mais nada até o retorno pra casa. Nem se despedia deles com o beijo habitual. Eles saíam correndo pela rua com outros amigos do bairro. Ia ela então para a cozinha, olhava o chão e se lembrava do tempo em que ficava batendo a terra com água. Aquele piso de cerâmica não necessitava de nenhum cuidado. Apenas um paninho úmido uma vez por semana. Sem ter o que fazer, corria sempre para o quarto das crianças onde um computador, doado pelo patrão do marido para que as crianças fizessem as lições de casa, a aguardava para mais uma manhã em uma sala de bate-papos.

Em uma dessas salas conheceu Ronaldo, com quem se relaciona virtualmente todos os dias. As crianças chegam ao meio-dia. Lá do quarto, enquanto se corresponde com o amante virtual, grita para as crianças esquentarem o almoço no microondas. A mãe, pela primeira vez, digita um “eu te amo, Ronaldinho”, e as crianças rolam entre tapas pelo chão lisinho de uma cozinha toda engordurada...