O SOBALA
Raymundo Silveira
 
 

Conheci o Sobala há muito tempo. Desde quando me iniciei nos rituais do culto ao deus Baco, e junto com um amigo, procurava uma biboca ainda aberta. Pois naquele tempo, a partir de dez da noite, era mais fácil homem parir do que encontrar aberto algum boteco. Naquela época havia dias e, sobretudo noites, em que o esporte mais praticado pelos jovens da minha aldeia chamava-se tomar uma. Nunca vi uma expressão representar algo tão distante do seu real significado. Em todos os lugares do mundo, tomar uma quer dizer isto mesmo: ingerir uma só cerveja, uma única taça de vinho, ou entornar apenas uma dose de cachaça. Pois no dialeto da minha aldeia, tomar uma equivalia a encher a cara.

O Sobala tinha este nome, não porque seu pai quando foi registrá-lo estivesse bêbado ou louco, mas devido a uma espécie de lema, saudação, cumprimento, insulto, despedida, ou simplesmente uma interjeição que ele pronunciava a troco de tudo ou de nada, e que poderia significar qualquer coisa que só ele sabia o que era. Em outras palavras, jamais falava uma frase, dava ou respondia a um "bom dia" ou "boa noite", nem saía nada sonoro de sua boca que não fosse Sobala. Praticamente, não conhecia outra palavra se não esta. "Oi Sobala!", "Sobala!". E fazia questão de pronunciar este misterioso vocábulo em voz alta, a escandir bem as silabas, e prolongando o A da do meio. "Bom dia, Sobala", "Só-baaaaaaaaaaa-la!" O tom da sua voz era grave e soava como um arroto. Era funcionário do Ministério da Saúde e sua função era borrifar as residências com um "genticida", digo melhor, inseticida chamado DDT. Por isto, todo funcionário que tivesse esta missão era conhecido como mata-mosquito. O Sobala, portanto, estivesse ou não matando um pernilongo era, para todos efeitos, um mata-mosquito.

Enquanto morou na minha aldeia, onde todas as pessoas conheciam umas às outras, o Sobala não assustava ninguém; pelo contrário, servia de diversão. Mas quando se mudou para Fortaleza e desfilava cambaleante pelas ruas centrais da cidade, aquele seu trissílabo monocórdio exercia variados efeitos sobre os transeuntes, que iam do pânico ao desafio aberto. No dia 31 de Março de 1964 a capital cearense era uma espécie de front. Cada uma das esquinas das praças principais estava enfeitada com ninhos de metralhadoras, baterias de artilharia antiaérea e canhões. Tanques de guerra rolavam pelas ruas. Oficiais do exército, da marinha e da aeronáutica, disfarçados de mendigos, arapongavam cada metro quadrado das vias centrais. Quem pronunciasse uma palavra parecida com João Galamarte, Isola, Arraiais, Peste ou Continuísmo seria sumariamente detido e levado a prestar contas junto ao Quartel General da Décima Região Militar. Uma vez estando lá, enquanto não provasse por A mais B que "Laranja da China", "Cubalibre", ou "Noites de Moscou" não passavam respectivamente de uma fruta, um drinque e uma canção, estaria com os direitos humanos valendo tanto quanto os de um cão raivoso que tivesse atacado e mordido o filho do comandante.

Pois bem, naquele dia o Sobala ouviu um colega sindicalista afirmar categoricamente que no Brasil estaria acontecendo uma "Grande Mentira", e como o dia seguinte fosse Primeiro de Abril, ele entendeu que deveria ser uma data muito festiva e, conseqüentemente, feriado. Por isto faltou ao trabalho e resolveu tomar uma. Lá pelo meio dia saiu do último boteco da sua "via-sacra" e se dirigiu para a Praça José de Alencar, onde continuavam, como no dia anterior, as mesmas fortificações. Sobala nem hesitou. Ao passar rente a um ninho de metralhadoras guarnecido por meia dúzia de soldados armados até os dentes, se adiantou um pouco, voltou a cabeça e pronunciou bem alto e com todo o desdém possível de existir neste mundo: "SO-BAAAAAAAAAAAAAAAAAAA-LA!"

A penúltima notícia que tive dele foi que teria sido banido para a Argélia em troca da libertação do embaixador de um país de primeiro mundo. Um amigo me contou depois que encontrou com ele em Argel, cambaleando pelas ruas como se estivesse a tomar uma. "Oi Sobala, tu ainda por aqui homem de Deus! Por que não voltas ao Brasil? Está te faltando alguma coisa?" "Só Maaaaaaaaaaaaaala!".


"MEDICUS QUANDOQUE SANAT, SAEPE LENIT ET SEMPER SOLATIUM EST"