TINA D'ÁGUA
Flavio Luengo Gimenez
 
 

Não estranho quando as pessoas que olham para mim se afastam. Necessário se faz que eu me apresente, você já deve ter cruzado comigo na rua, em uma esquina qualquer, num parque frio de manhã, chocando sua visão pequeno-burguesa e mesquinha. Certamente você me viu navegando feito um navio sem leme no meio de uma avenida, com certeza já olhou de relance meus andrajos, minhas luvas furadas que me foram dadas há muito tempo por uma bondosa senhora, que sua alma descanse em paz.

--Pau d'água!

Feliz e contente, eu aceito o elogio; tanto faz, continuo na luta, seus filhos da pátria. Meu cão, fiel escudeiro que me segue aonde quer que eu vá, late quando eu, dormindo, sou atacado por ratazanas. Elas recuam, eu sobrevivo! Fiel Espoleta!

--Que vergonha! Não tem vergonha de ser assim não, ô vagabundo!

Tenho não. Faz tempo que desisti de ser educado. O gesto que mais faço na vida, vocês sabem bem qual é. Como o que posso e o que me oferecem. Sou o que sou por força do mundo. Me cago para ele, ora!

--Olha lá, olha...ele vai cair, vai cair...

Caio mesmo, eu hesito e caio, ninguém é de ferro, eu já estou meio enferrujado, então desabo feito um castelo de cartas, soprado por um vento forte! Mas sempre tem uma mão caridosa que me apóia, desta vez é a mão de um senhor de olhos claros, vê-se que é entrado em anos, já conheceu tudo da vida e sabe quando alguém precisa mesmo de uma ajuda urgente.

--O senhor está bem?

--Vou indo.

--Mas, precisa de algo, ajuda, remédio, médico? Parece tão magro!

--Seu doutor, é a marvada. Eh eh eh!

É o que basta para ele me olhar me fulminando, como se fora eu um pária, como se fora um circo e ele de palhaço, mas meu tempo é elástico e eu, sentado no meio fio, olho de lado sua silhueta se afastando e seus impropérios solenes. Nada que um gole, bem saboreado, não afaste como uma mosca bicheira zunindo depressa. Pensando bem, o moço tem cara de mosca bicheira mesmo.

--Tem cada uma! Bêbado de merda!

Tem cara de duende o que vem ali, também quem, a esta hora da noite, se arriscaria numa hora desta a vir falar comigo em meu abrigo, junto com Espoleta que late feito doido?

--Meu caro irmão...

--Somos parentes? Prazer doutor!

--Somos todos irmãos!

--Se fossemos, o mundo não era esta bagaça.

--Ele te perdoa por tudo,filho.

--Ué, éramos irmãos há pouco. Já virei seu filho?Ele quem?

--Au Au! ( Espoleta olha o tornozelo preparando o bote)

--Ele, ora. Você sabe quem!

Não, juro que não sabia. Eles vêm todos cheios de luxo, terninhos engomados e muita papagaiada. Palavras, eu prefiro um belo gole, me acalenta mais do que Ele, ora.

--Calamidade! Que pecado tu dissestes.

Odeio lição de moral. Espoleta também, já se acostumou aos meus sinais, basta uma mexida de olho que ele gruda no sujeito. Claro, isto inibe os mais afoitos, este pequeno cão já me salvou de cada uma...

--Tina d'água!

--Morfético!

Olha quem fala, passa de braços dados com outro e eu que sou morfético?

--Seu moço, tem um dinheirinho aí?

--Tenho não, compadre.

Ah sim, porque todo o dinheiro que ganho...

--...Me dá uma daquela ali.

--ô bebaço, já não tomou todas não? Vai morrer de tanta aguardente!

--Se os escravos gostavam, se os engenhos produzem, se meu fígado aceita, porque não beber? Tinha gente que até comeria se fosse sólido!

--Tem mais jeito não. Daqui para a frente, não te vendo mais não!

Toca procurar outro bar, outra quitandinha, outro muquifo. Minha vida é andar por aí...

--Olha lá olha lá, vai cair. Vai cair!

Caí.