CÉU DESERTO
Aline Carvalho
 
 

Seis e cinco. O despertador toca. Na verdade, são seis horas porque o mundo dela acontece cinco minutos antes do mundo dos outros. Ela abre os olhos, incrédula, a escuridão que ainda escoa pela porta da varanda mostra a injustiça de se levantar tão cedo todos os dias da semana. Enrola.

Seis e quinze em seu universo paralelo. Repete automaticamente o gesto de erguer a leiteira de tefal com água fervendo e jogar o conteúdo sobre o pó de café. De vez em quando pensa que gostaria de saber quantas vezes já fez aquilo na sua vida e quantas ainda mais fará... um número praticamente impossível de ser descoberto, mas existente e presente nos arquivos divinos, se Deus se dispusesse a manter essas bobagens guardadas em algum lugar.

Seis e vinte. Ouve o marido e a filha lutando contra a manhã. Logo os dois estarão na cozinha, o desjejum já está pronto. Tenta fazer um poema, rapidinho:

Café da manhã
na solidão da cozinha,
Pela janela, um céu de cobre
Encobre o dia
Que se avizinha.

Gosta da rima rica e da rima interna, mas agora não há tempo para isso. Quem sabe mais tarde.

Seis e meia. Banho. Lá fora deve estar muito frio, porque a água do chuveiro não esquenta direito. Lava-se rapidamente, ofegando. Rapidamente, veste-se, calça-se, perfurma-se e penteia-se.

Seis e quarenta. Onde estão as chaves?

Seis e quarenta e cinco. Elevador, garagem. Carro. Dificuldades impensáveis de manobra, que engenheiro foi esse, meu Deus? Portão.

Seis e quarenta e sete. O portão se abre. O esplendor do céu de maio ofusca. Nenhuma nuvem, só aquele azul intenso, deserto, se os desertos fossem azuis. E as vidas não fossem tão cinzentas.