A DO QUADRO
Lia Abreu Falcão
 
 

"Quem não vê bem uma palavra
Não pode ver bem uma alma..."
[F. Pessoa]


Levantou com a morte nos olhos e esgueirou-se até a moldura escura de sua vida opaca onde restavam pálidos alguns amores e muitos rancores espalhados pela planície verdejante. Na casa ao lado morava o amor muito grande da sua vida mas nunca saía à janela e era desconhecido pelas poucas pessoas que povoavam seu mundinho.

Mais um gole de vinho e aquela beirada de horizonte ficaria confortavelmente mais próxima do seu meio e daria para manter-se lúcida por mais uns dez anos quem sabe perto da imensidão do céu ou de um deserto de anjos que povoava seus melhores maus pensamentos.

Deteve o choro e alguma lágrima ao lembrar que vivera mas nunca existira de verdade e queria sair dali soltar as amarras e andar pelas ruas como quem nasceu viveu e existiu. Agora possuía fleuma de amante e queria desparecer daquela rotina e repensar sua moldura.

Estranhou quando não conseguiu e pelo que entendeu jamais conseguiria pois fizeram-lhe uma moldura estranha e forte onde todos que passavam cabiam dentro mas muito poucos notavam que ela queria viver e além, existir. Agora os transeuntes meneavam a cabeça quando a olhavam e ela não entendia o porquê.

Decidiu mudar de tática e comportar-se como toda moça que vive dentro de uma moldura deve se comportar: emoldurada, sorriu o sorriso das sentinelas e das pessoas sem alegria.

Agora ela já não era a mesma pois entendera o seu destino. A tristeza de antes era apenas pose, essa não: era real e doía. Agora via que as pessoas tinham um mesmo olhar e a miravam como quem mira o inanimado e das janelas idênticas a sua dela ela sentiu doer seu coração.


E já não havia mais moldura nem quadro nem paisagem bucólica pregada na parede do museu. Havia apenas uma pessoa semelhante às pessoas que cruelmente pagam ingresso só para ver pessoas como ela pregadas nas paredes de um azul hostil e denso.

Com uma lágrima no olho esquerdo ardendo e outra no peito foi impedida de chorar, podia apenas refletir: e era perfeita a composição das cores que refletia de dentro do seu quadro e de sua eterna moldura.

Foi vendida a preço vil em hasta pública e arrematada por um parente distante que nunca ouvira falar em Toulouse-Lautrec ou Renoir.

Êta vida impressionante, meu Deus!

 
 
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