POR UM GOLE DE ÁGUA
Raymundo Silveira
 
 

Cicio, cicio. Cicio, cicio. Silvos intermitentes como guizos de cascavel. Era um pneu deixando escapar o ar. Aconteceu durante um daqueles famosos ralis Paris-Dakar. Uma família holandesa vivendo de aventuras. O pai, 40. A mãe, trinta e dois. E um filho de catorze. Tinham estudado o mapa durante um mês e meio. Sentiam-se seguros. Tudo rigorosamente planejado. Imprevistos praticamente zero. Advérbio traiçoeiro... Quando o praticamente desaparece, zero vira cem.

Quazarzate, sul do Marrocos. O pai dirigia. Ela consultava o mapa. Uma tempestade cegou-os nos dois sentidos: da visão, por ter entrado areia nos olhos. E no da direção: um ciclone levou o mapa. O primeiro, logo recuperaram. O outro, não. Um pouco preocupados, prosseguiram. Tinham o trajeto de cor. Na Mauritânia, se desviaram acidentalmente da rota e percorreram cento e cinqüenta quilômetros. Pretendiam pernoitar em Nouakchott. Tinham de passar por Atar, que nunca aparecia. Decidiram dormir no chão, em volta do veículo. Traziam tudo: dos sacos de dormir a armas de fogo.

No dia seguinte, depois do café, continuaram. De repente, se viram em pleno deserto. Rodavam em círculos. Não tinham idéia de onde se encontravam. Apesar do medo, nada faltava. Havia comida, água e combustível para dez dias. Dez dias se passam. Primeiro acabou a gasolina. Tiveram de caminhar. Mochilas às costas, em direção ao nada.

Quatro dias mais tarde foi a vez dos alimentos. Tiveram de racionar água. Quem mais bebia era o jovem. Pai e mãe não tinham como negar. Enlouquecidos de secura, mas encharcados de amor. Mais três dias, e acabou a água. A sede foi se tornando insuportável. Limite de tolerância ultrapassado na tarde do terceiro, depois que pararam de beber. A mãe havia escondido um cantil de dois litros.

Ninguém dormiu. A mulher se afastou: ia fazer cocô. Mas o que fez foi um sinal para o filho acompanhá-la. Nada supera o amor materno. Beberam sofregamente. Restou pouco mais de um litro. O pai não desconfiava. Na noite seguinte escutou um murmúrio de líquido. Cuidou ser alucinação. A esposa bebia e dava de beber. Percebeu a tramóia. Miseráveis. Como podem fazer isto comigo? Quero água! Não! Sua puta, como se atreve a me negar um gole de água! Avançou no cantil. O filho abateu-o pelas costas com um tiro de escopeta. Deixaram o cadáver e seguiram em frente, mal se sustendo em pé.

Mãe, quero água. Toma: só um gole... Não, Quero muita água. Não! Quero água e não me negue se não mato você como fiz com o pai. Não! Quero beber, mãe, por favor... Não. Esta água é minha. Só minha! Fui eu que guardei. Fui eu que escondi. Atracaram-se e lutaram. O filho tinha a escopeta. A mãe conseguiu subjugá-lo. Arrebatou a arma e atirou na cabeça dele.

Contei essa história a um professor de melancolia e ele me disse sem abanar a cabeça: é muito otimismo supor ser apenas a sede de água que vence o amor...