ESTRADA PARA O PARAÍSO
Ricardo Lahud
 
 

Desejo de criança. Sonho de adolescente. E meu pai sempre gritando, larga deste computador e vai estudar, menino. E olha eu aqui agora, no comando deste Boeing 767, talvez a melhor aeronave em operação em todo o mundo. Duas potentes turbinas de mais de vinte e três mil quilos de empuxo cada, quarenta e sete metros e meio de envergadura, quarenta e oito metros e meio de comprimento, quase dezesseis metros de altura e pesando pouco além de cento e dez toneladas.

Apenas um quarto das duzentos e oitenta poltronas está ocupado. A manhã segue clara e os ventos calmos, um verdadeiro céu de brigadeiro. Poderia ultrapassar com segurança os oitocentos quilômetros por hora, mas vou bem mais devagar, não tenho pressa e preciso tomar todos os cuidados do mundo. As circunstâncias que me colocaram como piloto deste milagre da tecnologia aeronáutica estão longe de serem comuns. Nunca pilotei nada maior do que um bimotor, embora tenha treinado muitas horas em simuladores e videogames para operar máquinas deste quilate. Mas estando a tripulação original inabilitada restou a mim, pouco mais que um amador esforçado, a responsabilidade sobre o destino deste avião.

Sinto a força do manche e inicio uma curva à esquerda, na direção indicada. A manobra é suave, minha autoconfiança aumenta, o suor que encharca minha camisa começa a secar. Oro com muito ardor, sinto que minha conexão com Deus neste instante é maior do que jamais foi em qualquer outro momento da minha vida. Tenho com Ele esta espécie de linha direta de comunicação. Verifico os inúmeros instrumentos, todos em duplicata. Sei o que cada um significa, mas não estou habituado a checá-los com uma simples olhada. Do rádio uma voz preocupada pede para que eu tome cuidado com minha altitude.

Distraio-me por segundos observando os telhados, que não são vermelhos, e as formigas humanas. Flagro-me cantarolando knock knock knock on the heaven’s door e me lembro do meu pai ordenando que abaixasse o volume. Quando lhe dizia que alcançaria o paraíso quando comandasse uma grande aeronave retrucava que eu era um rapaz inteligente e esforçado, mas... porque todo arremedo de elogio em sua boca era pervertido por um mas? O primo Elias, esse sim, teve fé em mim – Se você acredita que pode, então eu acredito que possa – disse sem qualquer mas.

Já tenho um contato visual com meu destino e estou convicto, como nunca tive certeza maior, de que Deus não me deixará falhar. Faço uma curva à direita, desta vez mais fechada, uma manobra mais brusca que pode ter derrubado alguns copos de plástico na coxia. Empurro o manche para frente e diminuo ainda mais a velocidade. Agora não há como errar. Quando o nariz do avião rompe a janela da torre olho para frente a tempo de ver refletida no vidro espelhado a minha imagem como numa fotografia, reconheço meu rosto sorridente na poltrona de comando. Se meu pai pudesse me ver agora...