CIRANDA MODERNA
Kalindra Baba
 
 

Deitada à noite em leito esplêndido
Ao som do mar e à luz de vela
Dorme a donzela em lençóis e sonhos.

— Cadê a lua ? pergunta a menina
Será que a tecnologia
Expulsou-a para o dia ?

Presa ao tornozelo, uma corrente de flor
Carregadinha de espinhos
Para afastá-la do amor.

Não bote aqui o seu pezinho
junto ao meu,
Pra depois não ir dizer
que você se arrependeu.

Reza à Indaiará* para escondê-la nas nuvens
Enquanto seus pensamentos
Não estiverem ainda ardendo.

Dorme tranqüila, menina
enquanto a lua não vem ...

* Minha bisavó teve onze filhas mulheres. A família morava em Mimoso do Sul, interior do Espírito Santo. As onze Marias, a minha bisavó Xiquinha, o meu bisavô Juca, e Indaiará, a nega babá que ajudava a tomar conta das travessuras e dos assanhamentos das meninas. Na época do verão, todo mundo ia para a casa da praia. Lá no norte do estado, quase limite com a Bahia: Conceição da Barra. Era uma beleza. A bagunça maior que Indaiará permitia era, nas noites de calor arretado, toda a meninada ir dormir fora, ao relento. Ela esticava os lençóis alvos sobre o capim e derramava a meninada por cima. Mas só se não fosse noite de lua cheia. Lua cheia traz coisa que não deve pra menina-moça, costumava dizer. Enquanto as Marias contavam as estrelinhas do céu, Indaiará ia inventando histórias pra distrai-las e ajudarem a pegar no sono, ao invés de caírem nas tentações dos maus pensamentos que os corpinhos de algumas já buscavam.

Anos mais tarde, quando a babá morreu, as Marias mais velhas avisavam sempre às mais novas que se cuidassem muito com a lua, que traz os desejos, o amor, o sofrimento. Que transforma menina em mulher — às vezes fora de hora. Lembravam as recomendações de Indaiará. E todo mundo de Conceição da Barra, e de Mimoso do Sul também, sabia que quando menina-donzela ficava com “dores no baixo”, por conta da desobediência de ficar de olho comprido pra lua, a nega se encarregava de puxar uma cortininha de nuvem pra esconder a maldita.

Eu não conheci a bisavó Xiquinha. Nem nenhuma das Marias. Tampouco Indaiará. Mas minha filha de doze anos, que também se chama Maria, Maria Isabel, que nunca foi a Mimoso do Sul, nem à Conceição da Barra, que mora na Avenida Atlântica, de frente para aquele mar que se prateia a cada quatro semanas, vez por outra já me pede um anti-espasmódico e uma intercessão mais direta junto àquela preta “véia”, pra providenciar uma nuvem bem carregada pra limpar suas idéias.