ARQUEOLOGIA
Doca Ramos Mello
 
 

Lá pelo futuro totalmente cibernético e tecnológico que aguarda a humanidade – isto é, daqui a pouco -, naturalmente algumas coisas continuarão como dantes no quartel do Abrantes, de modo que sempre haverá cientistas estudando a evolução humana e arqueólogos escarafunchando os pobres mortos a fim de estabelecer origens, hábitos alimentares, modos de convivência, etc., etc. O babado não muda nunca, minha gente! E como desapareceremos na poeira do tempo levando nossas vidinhas debaixo do braço, o povo robotizado terá curiosidades sobre nosso modo rústico de viver, eles até vão descobrir que usávamos uma coisinha boba chamada celular, por exemplo. Porque a esse tempo, celulares, computadores, ipods e parafernália parecerão peças jurássicas e o homem do futuro vai nos achar uns românticos das cavernas...

Este mundinho nosso de cada dia vai ter a maior cara de antiquário e muitas surpresas virão à tona. Eu, modestíssimamente, serei uma delas e por isso quero deixar registrada a minha verdade. Sim, porque esse negócio de concluir sem ouvir a palavra do maior interessado na questão pode muito bem resultar em mentiras históricas! Quem, por exemplo, pode nos garantir que o homem de Neanderthal não tomava chá de melissa? Pois não há referência nenhuma sobre isso nas pesquisas, a idéia que se tem é de que o chá de melissa veio muito tempo depois, com uma forte dor de barriga que se abateu sobre o Renascimento. Dizem...

Portanto, estou cuidando da minha biografia. Anotem aí.

Quando escavarem as catacumbas deste nosso mundo e chegarem até meu pobre cadaverzinho, ou ao que restar dele, tenho praticamente certeza de que serei catalogada como a “Múmia de Últimos Pêlos Crespos na Cabeça” – os cabelos, a essa época, já terão sido substituídos por carecas de um aço colorido e desatarraxável, assim como as sobrancelhas serão de um material acrílico removível.

Suscitarei teses acoloradas, serei esquartejada fio a fio para saber que diabos fazia uma criatura como eu na minha época, porque serei a única mulher deste nosso tempo a não apresentar lisa cabeleira sapecada no formol da ‘escova progressiva’. Então, serei estudada debaixo de lupa e eles dirão que provavelmente existiu algum ritual satânico que me obrigou a manter os cabelos naturalmente crespos, ou mesmo que eu teria sido uma mulher anarquista, dada a hábitos esdrúxulos como ler dicionários, ou ainda possivelmente por não ter ingerido granola na infância, não gostar de roupas extravagantes e detestar pagode, etc. O conjunto de meu caráter teria me levado a manter ondas capilares fora de moda e absolutamente condenadas pelos fashionistas da minha época.

Pfui...

Podem descobrir, comparando meus cabelos com os das demais mulheres, alguma coisa muito estranha no meu DNA, que me impeliu a afrontar os padrões capilares de beleza, quem sabe umas células rebeldes que me forçaram a viver meu tempo de vida com a cabeça levemente cacheada, ou mesmo algum tipo de ressentimento contido contra um profissional que teria me fritado a cabeleira um dia, prometendo apenas ‘baixar o volume’ – eles descobrem tudo a partir de um fio de cabelo, incluindo conversas, preferências cinematográficas, intimidades, é um perigo...

Ou talvez concluam que eu seria uma espécie de escrava condenada ao desterro em uma ilha afastada da humanidade, por conta de ter apelidado um cacique da minha tribo de ‘V. Exa. Metalurgíssima’, em franca desobediência ao apelo popular que sempre o considerou o Messias da terra onde vivi, ele próprio submetido ao procedimento alisatório quando ascendeu socialmente apesar de não saber ler. Então, eu teria recebido a condenação máxima dada às mulheres da época, ou seja, não ter direito à escova progressiva. Meu castigo, dirão as máquinas, seria também inspirado em um filme estrelado por uma beldade de Hollywood, Demi Moore. A personagem, por ser adúltera na era medieval, foi obrigada a andar pelas ruas com uma letra escarlate no peito e um garoto tocando bumbo atrás dela, para avisar a todos que ali seguia uma mulher que traiu o marido.

Eu, dirão os arqueólogos high tech, teria andado pelo mundo com um pente verde atravessado na garganta, a foto de Frank Aguiar nas costas e dois cabeleireiros tocando gaita de fole e berimbau atrás de mim, a demonstrar que ali seguia uma mulher que nunca abraçou o grande amor petista.

Antes que me exponham a múmia à execração pública, preciso me precaver contra as maledicências históricas e explicar que não tenho nada contra o cabelo liso, acho muito interessante, bonito, tudo de bom. Mas, inicialmente, devo dizer que sou atópica, qualquer aroma mais forte me dá alergia em forma de rinite, urticária, coceira, mal-estar. Segundo: não sou capaz de nenhum sacrifício desse tipo e não tenho saco para ficar dias inteiros no salão. Terceiro e último: o formol, usado na escova progressiva, me remete a defunto e prefiro ficar longe disso, ao menos enquanto eu não seja o próprio.

Recentemente, acompanhei uma amiga num desses experimentos, fiquei ali, tampando o nariz e ainda assim espirrando sem parar. Além da meleca de formol, tivemos secador quentíssimo, chapinha e fumaça. Depois de uma manhã inteira de estica-puxa-meleca-seca-esturrica-torra-esquenta na chapa-derrete-meleca-de-novo, minha amiga ganhou a mais fina e alisada cabeleira do mundo: um espetáculo! Quero que isso conste do meu depoimento porque a gente nunca sabe o que os arqueólogos podem falar da gente...

Cleópatra, coitada, foi personificada por ninguém menos que Liz Taylor na tela, por causa da beleza desproporcional que diziam ter. Eu me lembro do arrepio que senti, perdi até a respiração, quando vi a atriz ser desenrolada num tapete e surgir na tela com os únicos olhos violetas do mundo (antes de inventarem as lentes de contato). Pois há bem pouco tempo, reviraram a múmia da bela e ‘descobriram’ que a rainha era nariguda, queixuda, chata, grosseira e fedia a cecê... Deus me livre!