SOLEDAD
Tatiana Alves
 
 

A antipatia fora recíproca. Desde o instante em que foram apresentadas, uma energia diferente apossou-se do lugar. Olharam-se de cima a baixo, como guerreiros que medem o adversário. Nas entrelinhas das palavras de amabilidade – as mínimas necessárias para não ofender a boa educação – parecia haver um som em off , no qual o verdadeiro diálogo era travado, e o seu tom não era nada amigável.

Uma era morena, a outra, alourada. Uma era brasileira, a outra, espanhola. Uma era casada e a outra, solteira, e nesse pormenor residia o ponto-chave do conflito. Não se sabe dizer se foi a antipatia desta por aquela o que a levou a desejar-lhe o marido, ou se a fonte do estranhamento foi o fato de a primeira ter-lhe captado as intenções ao primeiro olhar. A verdade é que se odiaram de imediato e, como num mistério inescrutável, não lhes cabia a análise ou o entendimento.

Motivos de ordem profissional estreitaram o contato entre a estrangeira e o marido, fazendo com que aquela lhes freqüentasse a casa. Nessas ocasiões, via-se que a ruína era iminente. Como um cupim que começa sua destruição no anonimato, a estranha iniciou seu ataque de forma sorrateira, detectando as fraquezas de sua presa até envolvê-la. Viúva-negra, utilizara-se de movimentos sutis para enredá-lo em sua teia, para então aplicar o golpe final. E ambos, nessa dança em que os papéis de caça e de caçador não são perceptíveis, profanavam o amor que um dia habitara aquela casa. Baco derrotava Vênus, e ria-se dela em meio aos festins e aos delírios da embriaguez. Contrariando as leis mais antigas, a intrusa desdenhou a hospitalidade, inoculando seu veneno no lar que a acolhia.

À medida que a estrangeira ganhava terreno e se ia infiltrando no campo do inimigo, a esposa mantinha-se em guarda. Ignorava, contudo, que o companheiro se bandeara para o lado do adversário e, junto à outra, mentia-lhe. Enquanto tentava convencê-la a renegar sua intuição, cimentava-lhe o peito com palavras gélidas de desamor.

Entretanto, veneno é amargo, ainda que sobre ele se coloquem favos de mel. A princípio pode enganar aos tolos, mas não àqueles que enxergam com os olhos da alma. O travo amargo é sentido, ainda que mil vezes camuflado, e foi um dia, ao se olhar no espelho, que ela tudo percebeu. A pior das mentiras, pensou, é aquela que se conta a si mesmo. Seu amor pela vida havia sido ultrajado pela inescrupulosa rival, e esse ela não deixaria se esvair. Lembrando-se da avó, por coincidência espanhola, num átimo teve todas as certezas que desejava. Olhou o retrato da ancestral sevilhana e partiu.

A conversa seria breve. Queria saber o rumo que os acontecimentos tinham tomado, e isso era algo para ser resolvido entre as duas. Sua rivalidade transcendia os aspectos do cotidiano, remetendo a existências outras, que talvez pudessem explicar o que nem elas saberiam. O endereço fora anotado de forma cifrada, mas nada como a intuição para trazer-lhe tudo, numa bandeja. Nessas horas, suas ancestrais ciganas pareciam soprar-lhe ao ouvido a resposta desejada. Miseráveis, pensou, tão perto o tempo todo! E num segundo vislumbrou todas as situações e histórias obscuras, nas inúmeras vezes em que a razão silenciosa a tentava a acreditar, enquanto uma voz dentro de si bradava com todas as forças, clamando por atenção.

Como um oponente num duelo, a outra parecia aguardá-la. Saudaram-se educadamente, enquanto a primeira afastava-se para deixá-la entrar. Ela começou a falar, primeiro calmamente, depois de forma passional, com a voz engrolada, tomada pela indignação de quem fora espoliada da forma mais vil. A falta de ética de sua rival, que lhe conhecia os pormenores da casa, que lhe tocara maldosamente os porta-retratos em que jaziam épocas em que ainda sorriam juntos, incomodava-a mais do que a própria disputa.

A torrente de palavras parecia não ter fim, como se as contas a ajustar fossem muito maiores do que se podia prever. Embalada pelo som de sua voz, cujo timbre variava de acordo com a emoção, a moça sequer percebeu que a outra , a quem tinha momentaneamente dado as costas, lançara mão de um estilete em forma de punhal, desses usados para abrir correspondência. O reflexo da lâmina na tela da tevê fê-la abaixar-se. Depois de tudo, a outra tentara matá-la! Mais indignada do que propriamente surpresa, ela levantou-se e encarou a rival com ar de desafio.

Foi então que aconteceu. Tomada por forte emoção, começou a proferir palavras em espanhol. Seus cachos castanhos pareceram ganhar volume, e ela jogou-os para trás, em cascata. Sua gargalhada ressoou pela sala, fazendo com que a outra se encolhesse, assombrada. Trajava ainda os jeans com que viera, mas quem a olhasse naquele momento juraria vê-la em um sensual vestido vermelho. Sua ancestral viera em seu auxílio, para vingá-la. Nessa hora, uma batalha atemporal era travada: era Sevilha contra Vigo, era a andaluza contra a galega, sangues calientes que se enfrentavam. Norte e Sul, água e fogo, dia e noite se confrontavam na pele daquelas mulheres. Suas convicções, muito mais do que seu casamento, haviam sido ultrajadas, e para isso não havia perdão. Em delírio, livrou-se daquela que parecia ter cruzado o oceano apenas para lhe tirar a paz. Após a ter degolado, lambeu sensualmente o punhal, como se esse último gesto lhe desse supremacia em relação à outra. Era uma posse de caráter ritualístico, como se dominar os despojos daquela que havia sido sua rival a tornasse, de certa forma, invulnerável. Em um instante viu-se novamente de jeans, com os cabelos presos por um elástico. Sabia que agora tudo mudara. Não havia mais nada por que lutar. Agora era uma proscrita, fadada a buscar seu rumo mundo afora. Errante, peregrina, sua jornada iria de fato começar. Lembrando-se da avó, decidiu que precisava tomar um novo nome. Como a avó, findaria seus dias forte, porém só. Mudara. Agora era Soledad.