REVIDES
Vilson Palaro Júnior
 
 

O velho Cosme voltou para casa ainda embriagado pela alegria de ter visto a cerimônia de colação de grau do filho na universidade. Tinha a alma enlevada e embora soubesse o quanto lhe custara em esforço aquela graduação, via, com gratidão, como a vida, de algum modo, recompensara o amor a ela devotado. Para ele, a vida não era um jogo, era luta, na qual as regras não podiam ser desprezadas.

– Não há golpe de sorte, nem golpe baixo que lhe valha, meu filho. Dizia ele.

E acrescentava:

- Há só o valor de quem é honesto consigo.

A lição evocava a lembrança dos tempos passados, quando ainda era auxiliar de enfermagem, de um certo Dr. Ivanildo, que naqueles dias jazia no quarto do hospital.

Ivanildo fora o típico homem bem-sucedido, que conhecera cedo a rudez das necessidades da vida e que, valendo-se de uma inteligência ímpar, com as mãos arrancara em matéria tudo quanto a vida lhe negara em sonhos. Casado, os filhos saudáveis cursando boas universidades, a bela esposa de educação refinada, a casa luxuosa com os automóveis na garagem, as inúmeras viagens que, a negócios ou lazer, já fizera a outros países, os títulos de graduação que o tornaram um invejável homem de negócios, tudo isso, num pacote amorfo de carne, líquidos e honrarias, em que para o mundo consistia no “Dr. Ivanildo”.

Os filhos, ocupados com os estudos, a esposa, ocupada com os cuidados da casa e os compromissos sociais, os amigos, igualmente bem-sucedidos nos negócios e com eles muito ocupados, por certo não tinham tempo para visitar o enfermo, de modo que sua única companhia na maior parte dos dias resumia-se a Cosme, o auxiliar de enfermagem que lhe prestava cuidados, natural de Juazeiro e que pelas mesmas necessidades da vida viera parar em São Paulo. Mas com ele a coisa era diversa: gente humilde, castigada desde o berço pela falta de tudo, Cosme tinha nas pequenas conquistas materiais da vida algo como uma concessão divina, que só pelo fato de afastá-lo da realidade em que nascera, causava-lhe uma forte impressão, a que ele só podia chamar felicidade.

Esse contraste de condições sócio-emocional intrigava Ivanildo, que indagava a Cosme:

- Como você pode se sentir tão bem nesta vida que leva, com tão pouco e sem saber nada em como prover o amanhã?

Ao que o outro respondia:

- O pouco pra Deus é muito seu Ivanildo.

E sabe Deus o que queria isto dizer.

Mas foi numa dessas conversas que Cosme lhe disse:

- Na vida, seu Ivanildo, eu só quis poder dar de comer aos meus filhinhos. Nunca ver eles de pé no chão e barriga inchada de bicho, como era pra nós. Se posso isso, sei que eles irão mais longe que eu.

- Meu pai também era pobre Cosme. Mas eu não queria comer; queria escrever estórias, sonhava com elas, até que meu pai um dia rasgou todas e me mandou trabalhar.

- E não foi bom, seu Ivanildo? O senhor tem de tudo hoje. Retrucou Cosme.

- Bom? Que nada. Atalhou Ivanildo. - Não passo fome, Cosme, mas mendigo nesta minha fortuna.

Espantado, Cosme retrucou:

- Ah, disto eu não sei nada não, seu Ivanildo. Sei só que agradeço o que tenho, e não penso no resto. A fome me ensinou que se eu pensar no amanhã não tenho hoje o de comer, como um amigo lá no norte, Josias, que vendeu a vaquinha que tinha porque disseram que ia chover muito e ele pensou que com lavoura grande teria mais na safra, mas não choveu e um dos filhos dele, sem o leite, morreu. Alegria, se puder, é pra hoje só, seu Ivanildo; amanhã, se faz de novo, como hoje. Bem, repare não, seu Ivanildo, mas agora eu vou indo, que meu filho passou de ano e eu prometi que comia um lanche com ele. Até mais seu Ivanildo.

E foi-se embora.

Para Ivanildo, foi uma noite ruim, de sono entrecortado, permeado de sonhos, num dos quais se viu de novo menino, de novo pobre, caminhando com fome num deserto, mas se sentindo estranhamente feliz, trazendo embaixo do braço o inestimável tesouro: os escritos de suas estórias. A sede já o oprimia quando avistou uma fonte e ao se aproximar dela viu-se varrido por uma tempestade de areia, que levou consigo os preciosos textos, perdidos para sempre. Cego e desorientado, Ivanildo despertou, banhado em suor. Incapaz de evitar estar senão ali, naquele átimo de lucidez que o lançou a uma extraordinária dimensão, pode vislumbrar tudo aquilo em que consistia sua vida, na qual o troféu da luta lhe escapava entre os dedos, como um ídolo de areia. Ele, que em seu sucesso sempre pensara revidar à vida o tirar-lhe os sonhos, sentia a quem, de fato, caberia o golpe final nessa luta de ódio e morte, em que não haveria vencedores. Seus olhos perdidos viram a moldura de gesso que ornava os cantos do teto do quarto crescer demasiadamente, tornando claustrofóbico todo o cômodo onde jazia.

Hoje, Cosme intuía que, naquela noite distante, o exílio de uma vida toda cobrara seu preço à representação, ao golpe baixo que Ivanildo tentara aplicar a si próprio. Intuía, em sua humildade, que ouvir o coração tinha a ver com ser feliz. Hoje, Cosme tinha a alma enlevada e embora soubesse o quanto lhe custara em esforço a graduação do filho, via, com gratidão, como a vida soubera recompensar-lhe o amor devotado.