PEQUENA CRÔNICA SOBRE UMA GUERRA QUASE PARTICULAR
Zeca São Bernardo
 
 

Pensando bem, ás coisas poderiam ter sido bem diferentes...claro que esse pensamento é fruto de muita reflexão. Quase vinte anos passados e vejo a chuva que cai todas as tardes sobre outro prisma.

Prismas, ângulos, números, jogos de azar, da sorte e do acaso que nos levaram aquela tarde de outono.

O pátio do colégio estava abarrotado de curiosos, também, a notícia fora espalhada nos primeiros minutos das primeiras aulas de cada professor de nossa turma.

Nada de geometria, ninguém preocupado com a redação a ser entregue no dia seguinte e muitos nem perceberam que o teste surpresa de matemática não fora tão terrível.

Sim, ia ter briga na saída do colégio! E eu poderia, aqui, discorrer sobre todos os motivos pelos quais se vale à pena brigar quando se tem quinze anos ou quase. Mas prefiro ficar com Freud, afinal, percebi a proximidade entre os homens e os lobos desde muito cedo. Que oportunidade melhor para se encarnar o papel de lobo do que na adolescência?

Talvez, e somente talvez, os tais hormônios não ajudem muito ou tenha algo a ver com os distúrbios de temperamento ocasionados pelas alterações do clima, como se diz hoje. Fato comprovado mais que cientificamente e matéria corrida, conhecida e pensamento corrente em nossos dias.

Deixemos de lado o bom doutor e sua escola e tornemos aquela tarde cinza, abafada da escola publica. Deixemos de lado, também, o conforto desta cadeira e coloquemo-nos entre os que cercam os dois garotos! Sejamos como todos os outros e outras, observemos e ouçamos. Mas não intervenhamos, afinal são águas de muito passadas sob pontes que já ruíram. Ou seja, meras lembranças de um solitário.

Sim, lá estão eles cercados pela multidão- vale lembrar que nesta idade um ajuntamento de mais de três pessoas já parece uma multidão- olhos nos olhos. Dentes rangendo, punhos cerrados de um lado e tremores visíveis do outro.

Nomes? Para que nomes? Ah, sim, nomes são fundamentais: Valentão, o mais velho da turma, eternamente de mau humor, cercado por meia dúzia de sequazes em busca de auto afirmação. A boa e velha história de se estar em busca de uma identidade própria e na dúvida entre tantas possibilidades copia-se a de alguém. Ou se esconde na sombra de uma mais forte.

Do outro lado, a Vítima, que dispensa comentários! Uma vez vítima, concluísse que menos forte ou mais fraco mas, com certeza um desprivilegiado pela sorte que derrubou os cadernos do Valentão um dia antes sem querer e agora levará o justo castigo.

Não se preocupem, vai( e foi) ser rápido. Valentão não precisará dar o melhor de si neste dia. O fará no futuro, acreditem, esse menino tem jeito( já dizia o professor de geografia), desta vez serão apenas meia dúzia de socos, uma cotovelada nas costas, quatro ou cinco tapas na cara e uns quantos chutes no pobre coitado já caído a seus pés.

Bem que Valentão queria lembrar o por que da briga! Mas o cheiro de perfume barato das meninas, os brilhos nos olhos daquela garota, as vozes confundindo-se em seus ouvidos o tornavam-no ainda mais confuso. Obliterado pela falta de razão, queria apenas que tudo acaba-se logo. E, acabou.

O brigão deu-lhe as costas e deu alguns passos na direção de onde veio. Ouviu um gemido, ouviu um som estranho, não de todo desconhecido, algo parecido com o do jeans sendo esfregado contra o chão de cimento.

Voltou-se e lá estava ele em pé.

Tem gente que nem para apanhar presta, pensou.

De fato, a Vítima comportou-se mal, ergueu-se sozinha e fitou-o nos olhos. Nem passou pela cabeça do Valentão que o menino procurava olhar para algum lugar que não necessariamente era para ele. Só para ver se o sangue desabava de sua testa ou de seu olho. Só para ver se ainda enxergava...

O ódio subiu-lhe nas veias, o rubor tomou conta de sua face e voltou a carga. Disposto, desta vez, a dar o melhor de si!A vida não o quis, sem perceber prendeu o calcanhar num buraco do velho pátio no exato momento em que desferia o soco e...caiu! Isso mesmo, caiu e caiu sobre o próprio braço com o peso todo do corpo.

Já ouviram o barulho de um osso quebrando? Não, ora, ora, não se preocupem! Um dia desses, se ouvirem, garanto que nunca mais vão esquecer.

E é aqui que a história realmente começa! Mesmo quem estava mais perto garantiria que a coisa não foi bem assim! O burburinho alastrou-se rápido, muito mais rápido que o primeiro( o de que ia haver uma briga na escola) e todas as testemunhas juravam em uníssimo: Ele, a Vítima, acertou-lhe um soco tão forte que o Valentão caiu no chão já com o braço quebrado!

A verdade, a de que o esquelético rapazinho só estava tentando limpar a testa e com isso impedir do suor cair-lhe nas feridas abertas só era conhecida pelos dois.

Acho que foi o movimento da Vítima ao erguer simultaneamente as duas mãos em direção ao próprio rosto que gerou toda a confusão. Não, sei, não sei.

Só sei que o pior ainda estava por vir e veio em seguida.

Não, isso não, posso aceitar tudo menos isso!-pensou Valentão.

Que ofendessem sua mãe, que desrespeitassem a memória do pai ( que saiu de casa e por isso o menino resolveu enterra-lo prematuramente...antes pai morto que ausente, o velho só morreria quinze anos depois), que escarra-se em seu rosto e até o humilha-se ao extremo jogando-lhe na cara a homossexualidade do irmão mais velho. Isso tudo são coisas que um valentão de colégio pode admitir, contudo, a mão ali estendida pairando no ar com alguma poesia. Sustentada estranhamente pelas carnes raladas e inchadas de quem acabou de levar uma surra era-lhe ultrajante.

Como poderia aceitar ajuda de quem acabara de bater?

Não precisou, o bedel da escola surgiu em meio ao ajuntamento. Arrastando uma perna como sempre, era coxo.

Conduziu-os a diretoria. Cada qual aquele fim de tarde deve que dar explicações em casa.

Valentão ficou algumas semanas afastado da escola. Num misto de licença médica e suspensão por indisciplina.

Nunca mais se virão, pois a família da Vítima o transferiu de escola.

O que realmente importa é que dessa vez a mãe do Valentão não deu-lhe uma surra. Surpreendeu-se com o ar de distante de tudo de todos no hospital e no trajeto até sua casa. Parecia como que tomado por algo muito, muito maior que a dor do osso quebrado.

O que realmente importa, é que nesses dias Valentão teve tempo para pensar. Aceitou a antiga sugestão da professora de português, fez carteirinha na biblioteca. Começou a ler. Precisava esquecer, precisava fugir de si mesmo, não teve outra opção a não ser a de encarar-se de frente.

Quando retornou ás aulas já não era mais o mesmo. Rejeitava os antigos apelidos, desdenhava dos que queriam ser iguais ao que ele foi. Qual surpresa não teve a professora de Português, isso mesmo, aquela mesma que sugeriu-lhe que lê-se mais, quando no meio de certa aula notou-o disperso a olhar obcecadamente para algo entre seus cadernos obre a mesa.

Outra revista de sacanagem, murmurou. Bateu com a régua sobre a carteira vazia do lado para chamar a atenção do aluno rebelde e tomou-lhe o volume no susto...Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud.

É...as pessoas mudam. Não sei bem que utilidade tem ler Freud aos quinze anos. Mas deve ter valido a pena.

Quando isso tudo aconteceu? Sei lá, faz tempo, não me façam perguntas difíceis que não quero ter que pensar.

Só lembro que algumas bandas de rock de Brasília começavam a fazer shows no chamado eixo Rio-SP e que a molecada- naquela época- já ouvia Legião Urbana e não conseguia entender nada.

A onda era ser skatista ou será que era ser surfista?

Só sei que, hoje, quando ameaça virar o tempo meu braço direito ainda dói! Ai...