DECLARAÇÃO DE BENS
Monalisa Budel
 
 

Não há soma mensurável a ser citada. Não existe cupom fiscal, nota fiscal, boleto de pagamento, recibo ou contrato de compra e venda. Os itens mencionados não possuem prazo de validade, mas são perecíveis, não é necessário protege-los de fungos, umidade ou calor, embora possam apodrecer, queimar e desaparecer. São móveis, imóveis, constantes, inconstantes, questionáveis e flutuantes, materiais e subjetivos. Não foram adquiridos com trabalho honesto, não foram roubados, não são provenientes de herança e não são prêmios de loteria. São vividos em suas formas como é possível verificar nas breves descrições abaixo citadas.

Declaro então, os meus bens:

Duas ou três criações de monstros em desenvolvimento sem nomes e disformes. Não há utilização de hormônios, agentes químicos ou quaisquer alterações ou manipulações genéticas para acelerar o crescimento. Não são criados para o abate ou exploração da produção. Não geram lucro, muito menos despesas.

Mapa com o caminho para um mundo inventado, traçado no canto esquerdo da falha na cor e contorno da minha íris. Não existe endereço a ser considerado para o imóvel sendo este móvel.

Sapatos com couro de cervos medos, meias furadas com inseguranças tolas. Viagens para se perder de vista. Todas podem ser consultadas nas solas gastas.

Tabuleiros marchetados com peões de marfim e rainhas de plástico perdidas. Caixas de “Pra Sempres", sem cadeados, coloridas, barulhentas, bordadas e raras, todas desenhadas em papel de embrulho barato.

Lágrimas, raiva, teorias falidas, cenas e demências. Um pouco de exagero em todas as mentiras que contei e nas que fiz de conta que eram verdades. Erros nos cálculos ou discrepância de dados.

Lendas das pessoas reais que eu gostaria de ter escrito. Pessoas que eu admiro tanto que chego a chorar por medo de perdê-las. Não são dependentes, mas dividi cada um dos meus sonhos com elas.

Girafas amarelas, com jeito de gente feliz, recortadas de velhos gibis. Cestos e cestas de perfumes lembrados e de sabores sentidos. Uma história, tão incerta, tão possível, tão chuva e tão intensa.

Cenários para histórias em poemas escritos, em pontes de cidade pequena e em sonhar na varanda. Potes de tempero doce e cítrico de sonho e riso. Barcos de madeira serena em folhas de roseira, rios que dançam e navegam nas gargalhadas de meus amigos. Pode-se considerar como imobiliário sem avalistas e sem depreciação.

Uma ciranda de beijos e fornadas de bolinhos de chuva e o amor mais leve e mais mágico que já tive em minhas túnicas.

Taças de cristal marcadas na palma das minhas mãos em concha. Buracos na parede, grama alta no jardim e madeira apodrecendo no quintal. Pregos pra pendurar nomes. Nomes pra tirar pregos.

Ataduras, espelhos, tapetes e travesseiros, de sândalo, bálsamo e camomila. Noites dormidas e não dormidas, escolhidas abaixo do céu, entre areia de praia, lençóis amarrotados e sonhos mal feitos. Dados estatísticos não inseridos, gráficos astrais não consultados entre as ciganas do semáforo.

* Plano de contas coloridas que se arrebentaram de seus colares e assinaturas ilegíveis garantem a legitimidade dos bens declarados.

Esclarecimentos:

Não sei se terei lotes de tempo à serem restituídos, nem sei se devo declarar também todas as vezes em que fiquei devendo desculpas, eu assumo que perdi quase todos os prazos e entreguei metade dos pontos quando cansada e com dor de cabeça .

Não tenho documento algum que comprove todas as flores que já vi abrirem cores em meu jardim. Não declarei falência e nem abri concordata para as folhas das árvores que foram perdidas no gramado.

Não posso abater ás músicas que esqueci as letras, nem as melodias que fazem parte da minha trilha sonora.

Meus rendimentos ainda são pequenas moedas lacradas com fita adesiva em cofrinhos de garrafa pet.

Pago minhas dividas com poemas bregas escritos em noites de insônia.

Não sou isenta onde me entreguei por inteiro, apenas vivo em pequenas declarações.

Nada me pertence além daquilo que posso sentir.