FAMÍLIA DE NOVELA
Beto Muniz
 
 

Era a terceira vez que acontecia e eu soube assim que o telefone tocou. A campainha toca igual todas as vezes, mas algum alarme interno, dentro da alma, zumbiu junto com o alarme do telefone. Provavelmente é alma do ente querido passando para se despedir da alma que habita o nosso corpo... mas eu não acredito em nada disso! É besteira! Eu soube porque ninguém liga na casa dos outros após a meia noite para dar notícia boa, pra dizer que ganhou na mega-sena acumulada.

Meu irmão estava bonito. Eu nunca tinha visto ele tão bonito assim. Por mais estranho que possa parecer, ele estava com as mesmas feições de quando eu esmurrei a cara dele por causa de algumas pipocas. Sim, pipocas, dessas de milho estourado! Eu estourei a cara dele... mentira, foi só um murro no nariz, que ficou sangrando e a mãe colocou um chumaço de algodão pra estancar a hemorragia. Nem quebrou. Ele quis que eu dividisse minhas pipocas com ele e quando recusei meu irmão deu um tapa em minha mão. As pipocas se espalharam pelo chão e eu juntei meus dedos, fechei a mão e dei o soco. Deve ser por causa do chumaço de algodão no nariz que me lembrei desse episódio.

Minha cunhada chorava. Mas era de mentirinha! Ela tinha se separado dele oito vezes, e voltado, só no último ano. Agora estava livre do traste de vez. Porque meu irmão, como marido, era um traste, sim senhor. Não é depois de morto que ele vai virar um santo, o padroeiro dos casamentos felizes. Era um safado, vivia botando cornos na minha cunhada. Quantas vezes eu não tive que aplacar a angústia dessa coitada. Quando separava dele corria pra onde? Lá pra casa. Ficava uma semana, duas e depois voltava. Saudade do filho é complicado. Agora ela está feita! Vai herdar a casa, o carro, metade da transportadora e alguns caminguás depositados no banco... ainda tem o seguro, a pensão e essas coisas todas. Coitado do meu sobrinho, quero dizer, depende do ponto de vista! Em todo caso é mais um que vai crescer sem figura paterna por perto. Tomara que a última visão, a lembrança que fique, seja essa que eu tenho agora diante de mim, o pai rodeado de flores, bonito. Porque meu irmão até que ficou um defunto bonito. Só o vi bonito assim no dia em que se casou, da primeira vez, que foi a única que se casou de verdade, os outros todos foram ajuntamentos. Inclusive com a atual, a viúva, essa que vai herdar tudo.

Meu irmão só registrou um filho, com essa última. Filho é o que vale pra efeitos de herança e as outras todas, pelo menos meia dúzia de viúvas, vão ficar chupando o dedo. Meu irmão tinha sorte com mulher bonita. Uma mais gostosa que a outra. Tinha aversão a filhos, mas o que ninguém sabe, nem minha mãe, eu acho, é que o traste do meu irmão fez dois outros filhos em mulher da vida. Uma menina e outro menino! O menino mora com a vó, uma senhora que não pode nem ouvir falar no nome da filha, largada no mundo. Eu já fui lá procurar saber da mãe desse meu sobrinho bastardo, mas quase saio com a cabeça rachada. Já a mãe da Rita, minha sobrinha bastardinha, eu sei bem onde mora. Ela ainda não sabe que perdeu o pai de sua filha, quando aparecerem por lá cobrando o aluguel atrasado ela deve vir tirar satisfações, igual veio todas as vezes em que precisou falar com o safado do meu irmão. Ela sempre envia recados através de mim. Eu que não sou besta, só passava a informação adiante depois que ela dava pra mim... isso mesmo! Puta. Puta pro resto da vida. Não tem essa de ex-puta. Vadia quando convém arria as calcinhas, é só precisar que troca sexo por favores. Daí eu vou comer ela e só depois dizer que o meu irmão morreu. E morreu tarde! Ia desgraçar a vida de mais alguém se ficasse mais tempo entre os vivos.

Ninguém vai falar no assunto agora, mas nosso pai morreu sem falar com meu irmão. Dezoito anos sem falar com o próprio filho! E por que? Porque meu irmão era safado! Roubou o próprio pai, pegou procuração pra vender umas terras lá em Goiás e nunca repassou o dinheiro. A casa, o carro, o primeiro caminhão em sociedade com o Laerte na constituição da empresa de transportes, portanto metade da transportadora, e mais uns caraminguás que tinha no banco? Tudo fruto de passar a perna no próprio pai. A mãe já era separada do pai quando meu irmão deu o golpe, ela achou foi pouco porque nosso pai tinha dado o golpe nela durante o divórcio. Ficou com mais do que tinha direito e ela saiu só com o sobradinho da vila Nhocuné. Teve que costurar pra se manter e o velho, meu pai, pagou um salário mínimo de pensão alimentícia até o dia da morte. Depois que eu me apossei de metade do que era do velho, já que ele fez questão de colocar metade dos bens todos no meu nome em usufruto dele - e a outra metade ficou pra nova esposa e meu meio-irmão, eu dei um dos apartamentos pra minha mãe. Também dei como usufruto, mas continua em meu nome. Prevenção, porque os homens de nossa família não prestam... Ainda bem que não temos irmãs. Imagina o que seriam as mulheres? Tudo puta! Mas agora que meu irmão morreu dá pra família recomeçar a limpar o nome, comprar algum título em clube familiar, freqüentar festas distintas, enterrar essas histórias todas, esquecer os filhos ilegítimos... só não garanto parar de comer minhas ex-cunhadas. É pedir demais.