A VIDINHA NA PROVÍNCIA
Doca Ramos Mello
 
 

Faz dias que só chove. Se não chove forte, garoa. Se não garoa, um vento furioso lambe a província toda, derruba árvores, espalha sujeira... O céu meio cinza, meio preto, as pessoas se protegendo do vento, do friozinho, ô raios, isso não pára nunca!

Tem um banco quebrado na praça há um bom tempo. Há uma placa lá, dando lição de moral no cidadão: “Você já pagou por esse banco, vai pagar de novo, é o seu dinheiro que isso e mais aquilo”, pititi, pototó, etc. Quem vê, acha estranho, em lugar do conserto, conversa, as pessoas param, comentam – o que será isso, exatamente? E o banco lá, todo destroçado, os cacos pela calçada, a placa reluzente. Pois derrubaram a placa. Pois mandaram substituir a placa, oh, Senhor!

Muitas lojas estão-se fechando – os comerciantes matam moscas de sol a sol à espera da clientela, e se a clientela magra e rala mal dá para as encomendas, parece que mesmo as moscas não estão interessadas em ficar por aqui, estão rareando, rareando, de modo que quem trabalha no comércio está disputando mosca à tapa com a concorrência. Os comerciários abrem a boca, encostados às portas das lojas, tiram um pé, botam outro, conferem os ares, dormitam.

Um bêbado notório grita coisas absurdas - porque verdades -, pelas ruas, mas é o único cidadão com peito para enfrentar a ira do supremo mandatário desta naçãozinha pequena, bonita de fazer molhar os olhos e maltratada como prostituta rampeira de beira de estrada, pobrezinha, a maquiagem descendo pelo ralo, os olhos borrados, o prazer falso para ganhar tostões e tapas! Nada vai para frente, nada acontece. O padre viajou, a igreja fechou, o empresário vendeu a empresa, muitos moradores já se encaminham para a saída, com a mala nas costas – tentar outras terras é preciso, aqui, esgotou-se a fonte, roeu-se a corda, a vaca foi para o brejo, camarão perdeu o sono, o mel está concentrado no poder que o supremo mandatário da vez aperta entre seus milhares dedos ávidos. No mais, as abelhas foram confinadas para que aprendam a não fabricar mel a torto a direito para quem não faz parte da corte. Ai!

Estou com banzo de ter um prefeito...

Eu digo isso porque faz tempo que não temos um prefeito por essas bandas, cresce o mato, cai a casa, bambeia o poste, e o máximo que tem aparecido por aqui é um deus ou outro, gente esquisita que exige vela, novena, adoração perene de joelhos sobre o milho, e não acena sequer com o reino dos céus para os coitados dos adoradores para, pelo menos, engodar a população infeliz. E a população infeliz, coitadinha, prossegue com os calcanhares rachados, a pele seca, a boca amarga, sem um fiozinho de esperança nenhuma de melhora, o desconforto no peito, a respiração cansada, o sol no lombo, o vento na cara... Os olhos marejados na tristeza, o desencanto a derrubar as faces, os braços pensos ao lado do corpo em desalento, que fazer?

De quatro em quatro anos, a gente desta província renova os votos, investe em orações e novenas, elege novo protetor/salvador e, no dia seguinte, acorda na ressaca do sonho com os calcanhares rachados, a pele seca, a boca amarga, sem um fiozinho...

Tudo de novo.

Mais quatro anos de Jó e lá vai a massa inglória apostar de novo. E os cavalos escovam a pelagem, pintam os cascos, arreganham os dentes, exibem o porte no trote, dão espetáculos de esperança plena, exibem o corte da faca que haverá de extirpar o capim e fazer brotar helicônias, mostram o final feliz da carochinha popular, beija-se o casal protagonista, azulam os infinitos da província – tudo cena.

Os céus continuam negros aqui e ali. Chove, faz frio. Se vem o sol, vem ardido, chato, só para enfurecer ainda mais as nuvens e proliferar insetos, e então chove de novo, molha a terra, deixa a criança de nariz pingando, o pobre de sapatos encharcados. O bêbado bebe. O andarilho canta. No farol, malabares rotos, pobres moços, comidos pelo crack e pela maconha, fedidos, sujos. A mocinha do caixa do supermercado está esperando nenê. O office-boy faz charme para a manicure. Tem uma placa pedindo vendedor com prática – eu li vereador com prática... O cachimbo entorta a boca.

Novas eleições vêm aí. Marujo enfeita o barco, rei escamoteia a coroa no fundo do baú, roto esculhamba esfarrapado, tigre recolhe as unhas, marmanjo grosso adoça a fala, lé se junta com cré, riem as hienas que fazem seus arranjos, seus concluios... No ar, as promessas já invadem o buraco negro da sociedade desamparada, alimentam as ilusões, aumentam a bolsa de apostas. Zé tem certeza de que vai ganhar a vaga de motorista, o bambambã garantiu. Maria se dependura nas bandeiras da campanha, os peitos murchos em oferecimento geral e irrestrito, de olho num posto ‘fixo’. João só quer que o filho vá para a escola. Irene acredita que, dessa vez, faz a cirurgia do intestino. Júlio quer vaga de capanga... Rola a quirera, é o baile das máscaras escrotas ao som da sanfona que diverte os coitados, enquanto na surdina, a canalhada ensaboa o futuro com a baba porca da mentira sacana. Bocas se abrem e mostram dentes, línguas afiadas articulam um infinito de bondades falsas, ouro de tolo puro, festim barato, chita, farinha com água... A província se desintegra iluminada pelo reluzir pérfido da zircônia política: vai começar tudo de novo...