SUBJETIVAMENTE DONAIRE
Eduardo Prearo
 
 

Que chato! O que fazer depois de um surto: nutrir culpa, ingerir remédios fortíssimos como haldol & cia, procurar incontinenti um médico ou simplemente esperar e esperar pelas conseqüências? Nassif não fez nada disso, fez uma auto-massagem com uma bolinha: encostou-se na parede e fê-la deslizar pelas costas. Ele vivia pensando que as pessoas eram flores e que desabrochavam talvez uma vez ao ano. Aquela virilidade que ele invejava não iria desabrochar nele nem com academia. Odiava-se. Os empregos terceirizados eram temporários, o que o fazia sempre adentrar no eterno começar de novo. Bastava comparar-se com alguém supostamente rico para sua inveja quadriplicar. Resolveu prescindir da inveja, ou seja, resolveu deixar de comparar-se com coisas ou pessoas. Cada vez que escrevia algo, um poema ou uma prosa, pensava no Nobel, prêmio que massacrava a pouca criatividade que ele tinha. Soube, através de um conhecido, que o dinheiro desse cobiçado prêmio fora ganho em uma guerra, e por meio de fabricação de armas. Talvez o fim não justificasse os meios. Mas o que ele tinha a ver com isso, com o Nobel ou coisa parecida? Nada. O que o preocupava naquela noite de quinta-feira era que se ele dissesse aos médicos que sua doença havia evoluído, eles concordariam. As pessoas normalmente concordavam com tudo de danado que ele verbalizava sobre si próprio, talvez porque o achassem mimado, despreparado para a vida mesmo após os quarenta. Estava gordinho e era sedentário. Ser humano algum olhava para ele com interesse, e se olhasse ele ia logo dizendo: Deus o livre! E Deus livrava as pessoas dele; ainda bem, porque debaixo de suas roupas ele não era o que se podia chamar de tudo isso, pois tinha uns pneuzinhos torturantes e não era malhado. Aliás, não tinha mais muita vestimenta, havia jogado parte dela fora. Sim, porque se tentasse vendê-las em um brechó diriam: o senhor não sabe cuidar de roupas, elas estão mesmo imundas, portanto dou cinqüenta centavos mas só por esta e aquela peça e olhe lá. Bom, um real já dava pra comprar pãozinho, uns três pelo menos. Se tentasse doa-las, diriam: essas suas roupas devem estar cheias de bactérias, precisarei desinfetá-las com algo brabo, isso me dá nojo. Nassif queria ter poucas e boas roupas para não ficar carregando muita tralha, já que era uma espécie de nômade. Aprendera que se um governo pecava era porque a nação pecara em dobro. Ele era um pecador, bem dizer um crianção, e jamais um trabalhador profundo; enfim, infelizmente não tinha do que se gabar, a não ser que inventasse coisas boas sobre si mesmo e passasse a crer nelas piamente. Achava a consciência coletiva mirífica. Tinha somente um amigo, Kirie, que por vezes lhe dizia que quem ama destrata. Abdruschin dizia algo mais ou menos assim em seus textos. Os amigos de Kirie eram elegantíssimos, segundo o próprio, e se alguém dissesse o contrário, que havia desaire neles, estaria cometendo uma heresia extrema. Enfim, a sociedade e as religiões aplaudiam quem havia começado a trabalhar cedo. Nassif, não enquadrando-se nesse perfil, sentia-se um tanto ou quanto mal, pois...bom, pois nem ele mesmo sabia o porquê. Já era madrugada de sexta-feira e Nassif pensava na perfeição, no que fazer para deixar de ser invectivado. Abriu uma latinha amassada de cerveja e escrevinhou algo como “reprovação cem por cento”. Descartou o que escrevinhara, olhou-se no espelho e se descartou também, achava-se vulgar. Alguma coisa tinham contra ele. Abriu a janela, as cortinhas adejaram, a lua desapareceu misteriosamente. Após o surto, talvez houvesse retaliações. Ele jamais venceria na vida porque era o mal e não aceitava isso. O mal, todavia, era de fato um bem em gestação, então pra quê se estrebuchar? Fechou a janela e as cortinas pararam de adejar. Ligou para um samaritano que parecia ter a mesma idade dele:

-- Não sei, tenho vontade de sair de São Paulo, ir para o norte, por exemplo, tentar a vida em terras mais quentes.

-- Na nossa idade seria bom ter um apartamento. Estamos velhos para começar de novo, ainda mais dessa forma.

-- Mas não me sinto velho assim. É só que para mim, para eu mesmo, Nassif, o tempo não passa como para a maioria das pessoas, para quem um ano já é uma eternidade muito bem vivida. E além do mais, meu caro samaritano, após a morte, aí sim, iremos talvez mudar de vida. Dizem que lá do outro lado não há tempo e nem espaço. Fica-se o tempo todo acordado e qualquer pensamento nos arrebata para outro lugar. Enfim, a capacidade de concentração é menor. Por isso é importante talvez saber astrologia.

-- Como assim, saber horóscopo?

-- Sim, para sabermos em que tempo estamos, entende?

-- Não, seu Nassif.

-- Eu não saberia explicar, mas sei que lá do outro lado o tempo passa mais rápido e...

-- Qual o seu signo?

-- Jesus.

-- O senhor é crente?

-- Não, apesar de gostar de astrologia, sou católico.

-- Católico, senhor Nassif?

-- Sim, sou católico e uma coisa me incomoda atualmente. As minorias não vão às missas. Será que Jesus não aceitaria as minorias, achá-la-ias pecadoras?

-- Não, não creio.

-- Talvez eu vá mesmo tentar a vida no nordeste.

-- Mas as pessoas vêm de lá para tentar a vida aqui, e o senhor vai tentar a vida lá? Quer se tornar sertanejo, é?

-- Isso é verdade. Mas é que uma praia sempre me atrai, não o sertão; o mar me revigora ou pelo menos penso que me revigora. Bom, vou desligar. Há mais de trinta anos que ligo para vocês e talvez vá ficar ligando para aí pro o resto de minha vida. Isso não é ruim, é?

-- Não. Mas creio que teve gente que entrou para os samaritanos somente para ouvi-lo um pouco, para fazer uma tese, por exemplo.

-- Isso não é impossível. Penso também que muita coisa muda nesta cidade por minha causa. Sou de certa forma tido como um marginal, e as pessoas acabam reclamando das coisas que acham erradas por causa dos meus atos, ou das suspeitas que têm sobre minha pessoa.

-- Mas o senhor é ladrão?

-- Não, ou melhor, não sei. Mas sempre pego as notinhas, pelo amor de Deus, porque se eu for apontado como ladrão não serei aplaudido nem aqui nem no mundo todo, não é?

-- Ninguém é aplaudido por roubar.

-- Pobre geralmente não. Até mais.

-- Sempre que quiser ligue para nós. Estaremos sempre à disposição.

-- Grato. Sabe, acho que vocês são os essênios da atualidade.

-- Essênios?

-- Sim, os essênios eram um povo muito bom. Bem, tchau.

-- Tchau.

Já era manhã. Nassif pegou um pedaço de pão e começou a comê-lo. Já era hora de deixar de ser pecador. Ah, sim, e como era! Mas como? Jejuando? Não sabia, não sabia ao certo se era muito pecador. Precisava de uma bola de cristal que lhe mostrasse o que fazer porque sua intuição era nula. Mas não tinha esse direito de ter uma bola de cristal mágica. O sonho dele no momento era ser donaire. E bastava pouca coisa pra sentir-se um: uma camisa pólo cor de vinho, um paletó grafite, uma calça jeans e um sapato bico fino, desses que estão na última moda. Poxa, não tinha capacidade nem pra comprar essas coisas! Vagabundo, animal! Buuuuuuuuuuuuuuuuuuurro!