AGNUS DEI
Luís Valise
 
 

Quando uma coisa não começa bem, como pode acabar? Eu sabia que estava errado, mas não resisti à tentação, e comecei a dar em cima de Nita. Me fiz de besta:

- Anita? Ela jogou em mim seu olhar verdinho:

- Não, Nita, de Helenita.

- Então é Helenita? Mais que o verde, me matou o sorriso:

- Não, é Helena, só. Depois ficou Helenita. E agora, Nita. E você?

- Lu.

- Luís?

- Não.

- Lucas?

- Não.

- Diz.

- Não gosto.

- Diz, vai...

- Lucivaldo. Minha mãe era Lucia e meu pai Osvaldo. Deu isso aí...

- Não é tão feio assim...

Me avisaram:

- Sai fora, é evangélica.

Bem que eu estranhava. No escritório as outras vinham de mini-saia, calças justas, sombra, batom, desejo, ela não. Simples, vinha só com os olhos verdes e aquele sorriso, o resto abafado em vestidos largos e cabelos compridos.

Às sextas-feiras, depois do expediente, íamos tomar cerveja no bar da esquina, e formavam-se duplas que acabavam em motéis e, em alguns casos, até em casamentos. Eu chamava Nita:

- Vamos, Nita, vem com a gente, toma refrigerante mesmo...

- Obrigado, Lucivaldo, mas não posso. Não gosto de bar, me desculpe.

Ela me chamava de Lucivaldo. Nem minha mãe me chamava de Lucivaldo. E teve um dia em que ela me surpreendeu:

- Você tem compromisso hoje, Lucivaldo?

- Não, Nita, por quê?

- É que eu queria te convidar pra ir à minha igreja. Vamos?

Aquilo me pegou desprevenido, e por instantes fiquei mudo. Dei uma resposta idiota:

- Mas eu nem sei rezar...

- Não precisa. É só ficar ao meu lado, e pronto.

A idéia de ficar ao lado dela já era um começo, e aí a malandragem falou mais alto:

- Então eu vou.

Regra número um: todo malandro é otário. Ela entrou no meu carro e ficou sentadinha bem no canto do assento, junto à porta. Me contou que a família veio de Minas, tinha um irmão, e o pai era pastor da igreja. Também me pediu para não reparar na simplicidade do ambiente, e das pessoas, lugar de gente pobre, mas honesta. Eu disse que também não era rico, e era trabalhador, oras. Que não freqüentava igreja, mas acreditava em Deus, e mais um monte de cascatas. E o tal lugar era longe, seu moço. O carro ia ficar sujo de barro, e de repente nem ia compensar, porque tava na cara que ela era cabaçuda.

A igreja era mesmo simples, pintada de branco e azul, e uma placa que dizia "Casa dos Filhos do Senhor". O chão cimentado, bancos de madeira rústica sem acabamento, e silêncio. Os fiéis prestavam atenção no que um homem falava de um púlpito elevado:

- ... E aquele que segue a palavra do Pai não se arrependerá...

Nita buscou lugar para sentarmos, e ficamos bem juntinhos, porque havia bastante gente. A maciez e o calor do seu braço mexiam comigo. Falei bem junto da sua orelha:

- É o seu pai?

- É papai, sim. Mamãe é aquela sentada na primeira fila, à direita.

Não dava para ver o rosto da mãe. Só que era magra, seca, cabelo preso num coque. O pai também era magro, e tinha um cavanhaque pontudo, como figura do Aleijadinho.

- E o teu irmão?

- Ele não freqüenta a igreja.

Ainda bem, pensei, ao menos um do meu lado. Virei um pouco o rosto, e pela primeira vez olhei-a bem de perto. Era bonita, a danadinha. Vi suas mãos pequenas segurando a bíblia. Vi que ela me via pelo canto do olho. Sorrimos.

Comecei a freqüentar a igreja. Depois de um tempo, chamava o pai de Pastor, e a mãe de Senhora. Demorou, mas um dia Nita deixou que eu pegasse sua mão durante o culto. Fiquei de pau duro na Casa dos Filhos do Senhor, e como foi sincero não senti remorso.

Deixei de ir tomar cerveja às sextas, e já pegava na mão de Nita também dentro do carro. Em dias de culto vestia minhas roupas mais velhas, deixava a barba crescida, fazia cara piedosa. Sentados no banco rústico, sentia meu braço e minha perna roçando Nita, e nessas horas sentia crescer meu fervor, a um tal ponto que não agüentei mais:

- Nita, não me leve a mal, mas preciso confessar: eu não agüento mais ficar perto de você e não poder toca-la. Você pode me achar um louco, mas sou apenas um homem, um Filho do Senhor, e se é para continuar assim é melhor eu parar de freqüentar a igreja.

Os olhos verdes ficaram aflitos. Nita apertava as próprias mãos, buscando palavras para a situação inesperada:

- Lucivaldo, eu entendo, eu também... gostaria muito de... eu também estou sofrendo... o quê você quer que eu faça?

Demorô. Como dizia o Pastor: "Tem que ter fé." Eu tive fé e paciência, Nita estava no ponto de abate, não podia perder a chance:

- Nita, eu ouço o Pastor, porque confio nele. Ouço a Senhora, porque confio nela. Você confia em mim?

Canalha.

- Confio.

- Você me levou à igreja, eu fui. Você vai aonde eu te levar?

- Vou.

Canalha.

Na sexta, todos foram ao bar da esquina. Depois alguns iriam a um motel, outros acabariam casando. Eu só queria comer a Filha do Pastor.

Parei o carro na porta do motel. Peguei a mão de Nita, olhei seus olhos verdes:

- Confia em mim?

- Confio.

No quarto ela ficou em pé, agarrando a bolsa com força. Com cuidado, fiz com que ela sentasse num sofá grená.

- Vamos tomar uma taça de vinho, como numa celebração?

- Lucivaldo, o quê você vai fazer comigo?

- Só o que você quiser, Nita. Nada além disso.

- Promete?

- Prometo.

- Então eu tomo um pouquinho.

Apaguei a luz, como Nita pediu, e ela tirou o vestido. Meus olhos foram se acostumando à escuridão, e pude ver que ela tinha um corpo fenomenal. Pernas bem-torneadas, firmes. Cintura bem marcada, quadris arredondados. Tirou o sutiã, e pequenos seios apontaram em minha direção. Despi-me sem pressa, ficando de cuecas. Ela estava deitada na cama. Deitei-me ao seu lado, e beijei-a pela primeira vez. Logo estávamos os dois em brasa pura, quentes e ansiosos, e comecei a tirar suas calcinhas. Quando ela ficou nua eu pude ver a pentelharia. Deus! Cristo! Senhor! Uma mata espessa de cabelos escuros e encaracolados, cresciam desde o umbigo, para baixo e para os lados, formando uma tapeçaria negra e macia. Se meu relógio caísse ali seria preciso um detector de metais para encontra-lo. Sua mão macia me procurou dentro da cueca, e o resto você pode imaginar.

Quando chegamos à sua casa era muito tarde. Assim que parei o carro, o Pastor saiu preocupado:

- Nita, Nita! Aconteceu alguma coisa?

- Não, papai, está tudo bem...

O Pastor me olhou com cara feia, e me despediu:

- Boa noite, senhor Lucivaldo, boa noite.

Depois desse dia, todas as sextas eu levava Nita tarde para casa. Nunca mais o Pastor saiu no portão. Até o dia em que Nita me disse:

- Papai quer que você entre em casa.

Uma luz vermelha se acendeu. Regra número dois: um malandro sempre reconhece uma luz vermelha. Fui enrolando, enrolando, até o dia em que segurei as mãos de Nita:

- Olhe, Nita, vou ser sincero como sempre fui: não consigo me adaptar à sua religião. Venho me esforçando todo esse tempo, mas não consigo. Não me leve a mal, mas acho que devemos cada um seguir seu caminho. Eu sou ateu.

Nita chorou muito dentro do meu carro. Até que as lágrimas secaram, e seus olhos ficaram muito inchados. Levei-a para casa. Era cedo. O Pastor estranhou o horário:

- O quê aconteceu. Nita?

- Nada, papai. Nada.

Nita entrou rapidamente. O Pastor olhou demoradamente nos meus olhos, balançou a cabeça, e também entrou sem dar uma palavra.

Como todas as sextas, hoje é dia de tomar cerveja com a galera, e, de repente, descolar um lance, um motel. Nita pediu demissão, disse que arranjou emprego melhor, a área ficou livre. Se não fosse a velha malandragem eu tinha me fodido. Nita é boa pessoa, "Mereces alguém melhor que eu", eu disse. Do que mais sinto falta é da floresta negra. Credo!

No lugar dela entrou uma loira de pele queimada e corpo malhado em academia. Sarada. Dou um jeito de sentarmos junto, a conversa engrena, ela bebe bem, o que mais posso querer? Na hora de ir embora a gata pula fora:

- Meu namorado está me esperando.

Namorado? Como assim? E eu, como é que fico? Vou em direção ao estacionamento, mas não chego lá. Um cara me abraça, e encosta um revólver nas minhas costelas:

- Bico calado, e vem comigo.

- Quem é...

- Calado, já disse! O cano da arma machuca minha pele.

Um carro está parado junto ao meio-fio. Ele abre a porta traseira, e entramos, o revólver sempre na minha barriga. Seqüestro? Ofereço o Rolex, ele grita na minha cara:

- Calado, porra! Olha pro chão! Pro chão!

Não vejo por onde vamos, mas vamos longe. Quando o carro para, só vejo mato em volta.

- Desce!

Desço.

- Ajoelha!

Ajoelho.

- Você acredita em Deus?

- Por favor, quem é você?

- Você, não! Senhor!

- Quem é o senhor?

Regra número três: na hora agá, malandro sempre se caga.

- Eu sou o Filho do Pastor.

Na hora lembrei de Nita, seus pentelhos negros, e vi que agora quem ia se foder era eu. Uma bala estourou minha cabeça.