ESTRANHO SERIA SE EU NÃO RESSUSCITASSE
Sharon Ratis
 
 

Se eu fosse mais dada a misticismos e uma cigana, por exemplo, lesse a palma da minha mão na virada do ano - também por exemplo - e me dissesse que eu voltaria a poder sentir e que, no começo de um mês qualquer, todos os meus pensamentos - ou quase todos - estariam direcionados a um homem com idade o suficiente para ser meu pai (na verdade, mais velho do que meu pai), claro que eu não acreditaria.

Desisti de viver por um homem que gosta da mesma música de que gosto, que é adolescente até hoje, como sou também. Um homem, aos meus olhos, perfeito. Viajado. Com o mesmo gosto suicida pela trilogia "sexo, drogas e rock and roll". Culto ? Sim, porém não tanto quanto eu. Um homem tão apaixonante que me fez querer ter um filho com ele. O homem - o único homem - com quem eu quis misturar meu DNA e gerar outra criatura. Porque, cada vez que eu olhasse para a nossa criação, eu o veria.

Essa criança carregaria seu nome de príncipe, teria seu furo no queixo, nossos cabelos louros, nossa pele clara e nossos olhos castanhos. Só com esse homem pude me imaginar grávida, deixando uma continuação minha e dele. E de meus pais.

Fui atrás disso. Do meu sonho. Do filho que não vou ter. Do filho que só existirá na minha imaginação. Lourinho, com gênio forte e determinação. Dormindo misturado aos gatos. O menino que iria crescer e secar minhas lágrimas a cada animal perdido. O menininho que, quando eu chegasse à escola para buscá-lo, diria aos coleguinhas:

- Tá vendo aquela loira, a mais bonita ? É a minha mãe.

O garoto que faria compras comigo e faria questão de carregar as sacolas. O menino com o cabelo escurecendo como o meu e o do pai também escureceram. O menino que desenvolveria o gosto pela leitura, pela música e pelas artes, dando continuidade ao que eu, o pai dele e seus avós somos.

O adolescente que, ao invés de ser o melhor de sua turma, perderia o ano várias vezes, "mataria" aulas e colaria nas provas. Um adolescente para ser adolescente comigo pela vida inteira! Esse jovem faria Cinema ou Teatro na melhor universidade do país. Ou Medicina Veterinária. Aí, sim, ele seria o melhor! E, junto ao estudo acadêmico, ele seria um exímio bailarino e se apresentaria no Teatro Municipal, todo mundo batendo palmas.

Essa criança nunca nascerá. Lembrando de Machado, nunca transmitirei a ninguém o legado de minha miséria. Ele nunca apreciará esse mesmo Machado. Nunca verá seu pai se apresentando numa casa de shows lotada. Nem dormirá no meu colo. Nem consolará sua mãe a cada perda, afastando meus cabelos do rosto, secando minhas lágrimas e tirando o copo de uísque de minhas mãos.

Aí, quando já desisti de tudo, me aparece você. Você, que não é belo. Você, que não é magro. Não é cabeludo nem tatuado. Na verdade, é mais velho do que meu pai seria - se fosse vivo.

É certo que meu pai trabalharia em algum projeto com você. Será que isso quer dizer que, de um jeito ou de outro, estávamos fadados a nos encontrar ? Em um bar, em um ensaio ? Em casa. Você tem tudo para ter sido um dos melhores amigos de meu pai. Sabia que vocês nasceram no mesmo dia ? Tem idéia da surra que eu levaria quando meu pai, machista, descobrisse que sua "princesinha" está dormindo com seu melhor amigo ? O que você escolheria ? O amigo ou a amante ? Teria você coragem de dormir com a filha do seu amigo ? Eu não sei.

O que sei é que você é o homem que desejo hoje. Não é amor, você sabe. Eu não sei, mas você sabe. Você é o mais perto do meu pai que posso chegar. Ele estaria grisalho, como você. Buliria com a filha dos outros, como você. Seria inteligente, como você. Vocês seriam os melhores amigos! Até eu estragar tudo. Um Édipo - Electra ? - bem resolvido.

Meu pai morreu muito antes de que eu tivesse imaginação para tudo isso. Não dormi com o único homem com quem geraria um filho. Não tenho continuidade. Não deixarei herdeiros do homem de minha vida. Sua geração acabará em mim.

Você surgiu de onde não devia surgir mais nada. Nós conversamos, ficamos cada vez mais íntimos. Não sei o que esperar de você. Não sei o que você quer de mim. O que sei é que você me desperta o mais primitivo dos desejos. O que sei é que quero estar com você como quero estar com meu pai. O que sei é que sinto um ciúme louco de você - como sentiria de meu pai. O que sei é que quero que, a cada vez que você durma com uma mulher que não seja eu, você só possa ver meu rosto e meu corpo. E que não consiga consumar o ato.

Quero que você pense em mim como penso em você. Que me apresente a escritores que não conheço, que me acompanhe a shows de artistas dos quais você nunca ouviu falar. E que segure meus cabelos quando eu vomitar de bêbada. E que dê risadas, comigo, disso, no dia seguinte.

Pode ser que eu esteja querendo mais do que eu posso ter do homem que me mostrou que é hora de recomeçar. Que é hora de adiar minha escolha definitiva, meu vôo sem asas. Mas você nem sabe de nada disso. Provavelmente, morrerá antes de mim e nunca saberá o quanto foi querido.