CALABOCA II
Beto Muniz
 
 

Nem vi! Apenas senti a mornidão arrodeando meu pescoço e soube que morreria. A mão peluda, morna, sebosa, me paralisou os movimentos do pescoço e me fez sentir uma calma quase celestial. Não esbocei reação, a mão pendia, sangrenta. Os olhos sentiram saudades da figura magriça que havia sumido há pouco na esquina. O engraxate segurando calção e dentes sumiu da minha mente quando o bruto encostou minha cara na dele e repetiu algumas maldições. Uns perdigotos saltaram no meu olho. Pela falha do ouro a língua expulsava sangue e saliva manchando minha camisa. Não, eu não entendia, mas ele repetia que eu estava fodido e eu odeio quando dizem que estou fodido. Soquei a boca do bruto novamente e o tempo parou.

Não morri ali, a vista de passarinhos com seus sorrisos amarelos recolhidos, apenas desmaiei desfazendo a pose de gato quebrando gaiolas.

Mentiroso, devia ter mãe na zona! Disse que eu fora flagrado bolinando inocente e fechou a grade. O bruto era tira.

Nove pares de olhos na cela. No quinto dia eu despertei e os olhos do bruto com mãe na zona me fitavam. Enfiou o indicador no lábio roxo, cicatrizando, e me mostrou o dente de ouro no lugar. Disse que cu de engraxate era melhor que boceta de primeira menstruação e se foi. Pensei no magriço, sem bunda, com o calção escorregando pelas pernas. Depois pensei que devia me preocupar mais com outro cu, o meu. Lembrava que em algum tempo ele recebera nove picas mas podia ser um sonho porque eu não sentia dor, pensei nos olhos de lamparina do engraxate, talvez tivessem se apagado para sempre. Acho que chorei, mas não senti o calor de lágrimas descendo pelo rosto. Dormi. Acordei na enfermeria com o bruto perguntando se eu estava pronto para a segunda etapa. A barba grossa raspando meu rosto, fiz sinal com a cabeça que sim, balbuciei minha calma convalescente e ele bafejou no meu ouvido que eu estava fodido. Ri. Eu odeio quando dizem que estou fodido. Eu odeio muito quando me dizem que estou fodido. Eu poderia matar quem diz que estou fodido. Era a segunda vez que eu odiava aquele bruto sem amor de mãe. Mirei o dente de ouro e cuspi.

Muito tempo depois voltei pra cela, para nove pares de olhos, nove picas. Eu pensava no cu do engraxate. Pensava na bunda de menos dentro dos calções demais, nas chinelas puídas. Tentava esquecer os olhos de lamparina. Doía lembrar daqueles olhos acesos.

Dois dias depois eu voltei para a enfermaria. O bruto também voltou, quis me mostrar o beiço sarado e o dente de ouro enquanto repetia que eu estava fodido. Balbuciei minha calma diabólica. "Eu odeio estar fodido". Confiante, debruçou sobre a grade da cama. "Tu tá fudido!". A barba malfeita raspando meus lábios partidos para dizer no ouvido que eu tava fudido... Pensei em corrigí-lo, mas ele não saberia a diferença entre estar fodido e estar fudido. Tenho 30 dentes, quatro canais e nove obturações. Foram os doze primeiros dentes da frente, sadios, que se cravaram na jugular do bruto. Travei o maxilar e senti gosto de sangue descendo goela abaixo.

Eu odeio muito estar fodido. Só cheiro de sangue para aplacar esse ódio.