VOCÊ AINDA NÃO VIU NADA
Tatiana Alves
 
 

- Você tem que tomar cuidado, viu? Não pode ficar encarando a cliente assim. - Mas ela nem ouviu direito. Ainda não acreditava que havia sido selecionada para aquela loja chiquérrima no shopping recém-inaugurado. Tudo bem que não havia muitas candidatas no dia da entrevista, mas sabia que o seu Inglês estava bem enferrujado, oxidado até, e suas roupas não condiziam com o perfil da loja. Tudo bem, disse a gerente, ela pode comprar algumas peças da loja com desconto. Com um bom corte de cabelo, um bom banho de loja, acho que dá para aceitar, sim.

Agora iria conviver com aquelas mulheres chiques, que cheiram a perfume de casamento, daqueles que são usados em ocasiões muito especiais, e que deixam um rastro de sofisticação por onde passam. Ela podia sentir que aquele dia seria um divisor de águas em sua vida, e que os seus dias de pobreza, como ela os chamava, ficariam definitivamente para trás.

Formava com ele um casal desses que estão juntos sobretudo devido às semelhanças, sem que necessariamente um possa corrigir o outro, até porque são unidos mais pelos defeitos do que propriamente pelas virtudes. Pois bem. Eram um casal desse tipo. Sua principal atividade, além de imaginar o que um dia viriam a realizar, consistia em sobreviver à custa de pequenos golpes e trambiques, do cartão de crédito clonado ao pequeno desvio de mercadorias do estoque da loja, muitas vezes só percebido tempos depois, no dia de contagem. Ela, em seu último emprego fixo, saía a cada noite com uma roupa mais luxuosa do que a outra, tomando o cuidado de passá-la a ferro antes de devolvê-la à arara original. Desse modo, jamais repetia uma roupa e estava sempre impecável, sem precisar desembolsar um único centavo. Mas seu pequeno empréstimo não passara despercebido, e agora tinha passado um bom tempo desempregada e, pior, desalinhada, sem uma roupa decente para desfilar pela noite carioca. Hoje, para festejar o novo emprego, havia combinado com ele de jantarem fora.

Aquela noite tinha tudo para ser especial: além do emprego, celebravam o primeiro ano juntos, e a comemoração, prometera ele, seria inesquecível. A julgar pela sua habitual megalomania, a noite, sem dúvida, prometia. No primeiro mês de namoro, ele mandara duas dúzias de rosas à casa dela, encantando a família da moça e despertando a inveja das vizinhas da vila. Quando ela descobriu que as flores foram obtidas com um colega - um camarada, segundo ele -, que trabalhava em uma floricultura e conseguiu desviar os buquês, nem assim ela se decepcionou. Ao contrário: achou bonitinha a criatividade com que ele contornou a falta de dinheiro. Com o passar do tempo, ele começou a confidenciar os pequenos trambiques com que driblava as dificuldades, e ela se apaixonou ainda mais. Semelhante atrai semelhante. Lembrando-se dos presentes e das noites tórridas no motel que eles freqüentavam sem pagar - o rapaz da recepção era vizinho dele -, ela suspirou, e escolheu o vestido que usaria naquela noite, combinando com as unhas que tinha feito de graça no salão em que a irmã trabalhava.

Ele veio buscá-la num carrão importado, cujo nome ela nem sabia pronunciar direito. Sabia que era mitsu-alguma-coisa, pois ele fez questão de exibi-lo assim que chegou. Nem perguntaria como ele conseguira o carro. Havia coisas que não precisavam de respostas, e essa definitivamente era uma delas. - Gostou, princesa? Pois você ainda não viu nada...

Ela deu aquele sorrisinho meio sonso que ele adorava, e entrou no carro vagarosamente, fingindo ter classe. Imagina se madame entra correndo em carro... Sentou-se delicadamente ao lado dele - até porque o vestido que trajava era de um tecido finíssimo, e ela não podia se arriscar a rasgá-lo. Ele valia seis meses do seu salário.

Ao chegar ao restaurante, sentiu-se a própria Julia Roberts em Uma linda mulher. Tudo bem que elas eram bem diferentes, mas ele também não era nenhum Richard Gere, e o lugar era lindo demais para ela perder tempo pensando nisso.
- E aí, princesa? Sou bom nisso, hein?! E tem mais: você ainda não viu nada....

Meio tímida a princípio, descobriu que tinha bom gosto. Pediu o prato mais caro do restaurante, regado ao melhor vinho, evidentemente. Nascera para ser rica. E a vida agora reconhecia isso, pagando-lhe o devido tributo. Dinheiro não é problema, repetia ele, estalando a língua nos dentes e erguendo o cálice, em sinal de triunfo. Seu entusiasmo aumentava na proporção direta das garrafas que se iam esvaziando. A iluminação indireta que vinha de suaves lâmpadas estrategicamente posicionadas aumentava o aconchego do lugar. A música ambiente também era discretíssima, em nada comparável aos lugares horrorosos que freqüentaram até então, onde canções de mau gosto rivalizavam com os berros dos garçons em direção à cozinha. Aqui, não. Tudo era discreto, com a finalidade de importunar o mínimo possível o cliente que, decerto, se tornaria assíduo. Era impossível não ficar encantado diante de tamanho luxo e ela, criada à base de churrasquinho no espeto, comido em pé e equilibrando copos plásticos, adentrara um novo mundo, no qual a menor lembrança do passado parecia pertencer a outra pessoa, em outra época. Outra vida, simplesmente. A dela era esta a partir de hoje.

O garçom então trouxe uma capinha preta, parecendo uma carteira. Quando ele a abriu, seus olhos se arregalaram diante do valor: Como alguém pode pagar tanto por um jantar? Se ele estivesse trabalhando, teria que suar muito para proporcionar uma extravagância daquelas. Ainda bem que o cartão emprestado tinha um limite alto, e ainda levaria pelo menos três dias até o dono dar pela falta dele. Sacando-o com arrogância, colocou-o junto à nota: - Acrescente sua gorjeta, também. - o tom era de empáfia e denotava ostentação. - Perdão, senhor, mas a casa não trabalha com cartão de crédito - as palavras do garçom foram proferidas em tom suave, mas eram implacáveis.

Ele suava frio. E agora? Os olhos da namorada eram uma mistura de apreensão e de censura. Os segundos se passavam, e o garçom parecia congelado, à espera de uma definição.

- Como assim, não trabalha com cartão? Todo mundo aceita cartão. Quem vocês pensam que são? - seu tom agora era exaltado, e as pessoas das mesas próximas começaram a olhá-los, com uma expressão de curiosidade que ele não podia suportar. - Meu cartão é chique, tá? VIP! Não tenho culpa se esse lugar vagabundo é cheio de frescura...

- Perfeitamente, senhor. - o garçom estava impassível, e parecia ter inclusive baixado o tom de voz, além da fisionomia de paisagem normalmente adotada em tais ocasiões. - Teremos o maior prazer em aceitar o seu cheque, senhor. - ele insistia em ser gentil, oferecendo alternativas.

Essa não! Usara a última folhinha do talão na semana anterior, e o banco já havia suspendido o fornecimento de um novo talão, por causa de uma de suas táticas: assinava um pouco diferente e, no dia seguinte, sustava o cheque alegando ter sido assaltado. Depois da terceira vez, teve de ouvir do gerente da conta que o cheque passara pela perícia, que a análise grafológica provara ter sido ele quem assinara... Resumindo: estava sem cheques, também. E a princesa, como ele a chamava, suspirava do outro lado da mesa, prelibando a noite inesquecível que ele lhe tinha prometido.

- Uso o cartão de débito, então, blefou ele, sabendo que àquela hora seria difícil estabelecer uma conexão com o banco.
Dito e feito. Apesar das inúmeras tentativas, o sistema não aceitava tal transação após as vinte e duas horas. Sorte dele, já que não possuía um tostão no banco.

- Tudo bem! Vou ter que ir em casa, pois não ando com tanto dinheiro vivo em mãos. Nunca se sabe quando se vai encontrar um ladrão...

- Certamente, senhor. - o tom do garçom era de ironia, ou foi impressão?

- Me espera aí, que já volto. Vou tentar dar um jeito.

- Eu vou ficar aqui sozinha?Isso já é demais...

-É a garantia de que eu vou voltar. Mas eu juro que não demoro. E depois continuamos a comemoração. Você nem sabe o que te espera...

Saiu, repassando mentalmente os amigos a quem poderia pedir tal quantia. Nenhum. Além de não terem, quem iria acreditar que ele tinha gasto mais do que um salário-mínimo em um único jantar? A rapaziada era picareta mas não era louca...

Depois de dar duas voltas pelo bairro, tomou o caminho de volta para o restaurante, sem saber o que fazer. Ela ficara no lugar, fingindo telefonar para alguém, só para evitar o constrangimento de encarar os garçons. Depois baixou os olhos e começou a olhar os telefones da sua agenda do celular, mas o tempo não passava. Sua vontade era sair dali correndo, e voar no pescoço daquele miserável.

Alguns minutos se passaram, até que ele finalmente retornou. Com ar de derrota, olhou-a e tentou negociar com o gerente:

- Eu passo sempre por aqui. Amanhã eu venho aqui e acerto. É que hoje é nosso aniversário de namoro, e eu queria fazer uma surpresa para ela. Quebra essa aí, meu irmão. - deu uma piscadela ao gerente, na esperança de conquistar sua cumplicidade, mas foi inútil.

- A casa não funciona assim, senhor. - a amabilidade do maitre havia desaparecido por completo.

- Mas o senhor não entende... Agora é realmente impossível... Eu não tenho...

.....

Duas horas depois, ela ainda areava os panelões da cozinha do restaurante, escondida atrás de uma pilha gigantesca de pratos sujos, enquanto ele jogava restos de comida em sacos enormes, semelhantes a entulhos de obras. Era praticamente um pedreiro gastronômico.

- Um dia a gente ainda vai rir disso tudo, minha linda. E amanhã é outro dia, e a gente poderia...

- Você ainda não viu nada, resmungava ela entre dentes, fulminando-o com o olhar, enquanto lascava mais uma vez o esmalte na panela do restaurante.