OUTROS POENTES
Eduardo Prearo
 
 

As perucas das manequins das montras eram-lhe objeto de desejo. Talvez todas que vestisse não enganaria ninguém, somente ele, e por alguns segundos apenas. Retornou pra onde morava e pegou uma foto sua tirada há cinco anos. Não saiu mais bonito em nenhuma outra foto desde aquela. Nunca fora bonito, essa era a verdade. Guardou a foto e olhou pra lua, da janela. Era lua quase cheia que vestia um véu negro transparente. Lembrou-se do globo terrestre amarelado girando no altar de uma igreja. Os descréditos alheios, talvez imaginados, agora pesavam umas trezentas toneladas, e então, para atrair leveza evocou perfeição, a perfeição que não vinha, que não aparecia, que não tinha, sabe-se lá. Como encontrar dentro de si a força que ninguém no mundo todo possuia? O telefone tocou e a voz que lhe disse um oi não era corpórea. Te vi na foto, te achei lindo. Mas ele não era; fora um dia na foto que a pessoa da voz provavelmente vira no site de encontros. A voz ainda disse que queria conhecê-lo. E ele, bobo, disse sim. Quem sabe no encontro marcado estaria com a mesma cara da foto!

Eram onze e trinta p.m. de um fevereiro qualquer. O encontro fora marcado para meia-noite, num restaurante. Ansioso, sabia de antemão que iria decepcionar, mas sempre teimava. A pessoa não iria ser grossa e sair correndo; inventaria alguma coisa, sabe-se lá. Ela havia lhe dito que... que estaria vestida de verde. E foi fácil achá-la com os olhos no meio de tanta gente, ainda ali parado na entrada. Céus, que pessoa maravilhosa, pensou. Quase deu uma gargalhada, e se a desse realmente, surtasse assim, seria punido de alguma forma por "Deus", como sempre. Foi então se aproximando da mesa onde estava a pessoa da voz, lentamente. Olhou para um grupo de anões, talvez recém-chegados de algum circo do norte, para Greta Garbo, que lhe sorriu um sorriso de um clone mal feito, para Balzac, outro clone, e mais calmo, parou defronte do ser com quem marcara um encontro, do outro lado da mesa, tentando esboçar um risinho.

--- Como vai?

--- Vou bem, e o senhor?

--- Eu...

--- O senhor é o cara da foto?

--- Sou.

--- Nossa, que diferença de perto! Mas sente-se. Vamos jantar que estou morrendo de fome.

--- Está bem. E o que pediremos, almôndegas?

--- Não seja glacial.

--- Ô sono sô !

--- O quê, está com sono?

--- Sim, sou meio mole, e essas situações me dão sono. Acho que vou acabar sendo preso; enfim, acho que vou acabar apanhando e talvez literalmente. Você não gostou de mim, está claro, e sei que vai me rotular de alguma coisa. Preocupa-me um pouco estar indiferente, sabe; sem sentimentos, sem vontade de chorar, sem vontade de nada.

--- Vai ver é esse seu vício maldito.

--- Como sabe que fumo?

--- Ah, ah, um passarinho verde me contou?

--- Um periquito?

--- Vagabundo!

--- Desculpe, mas não vim aqui para ouvir que sou isso ou aquilo. Vou-me embora. Não vou mais falar de minha vida pra ninguém; pois se falo, fico a achar tudo pesado. Não fui trabalhar hoje, por exemplo; acordei tarde e todo mundo sabia que acordei tarde somente ao olhar para mim, dizendo-me bom dia só para provocar, em plena cinco da tarde; e se lhe contasse que não fui trabalhar hoje, e que tudo pesou, que fiquei me sentindo um vagabundo, um mole, um doente, alguém sem expectativas e além do mais culpado, você talvez não acreditaria.

--- Que pena! Que pena que o senhor é assim! Sinto muito. Sinto que perde oportunidades de fazer seu pé-de-meia, por preguiça. Não se esmoreça, contudo. Seu poente chegou, e talvez tenha de dar explicações. De um poente de um desconhecido quem vai querer saber? E logo chegará a noite, onde tudo estará perdido. Sua noite. Não, não vou convidá-lo para irmos até ali, namorá-lo. Se o senhor entrar na noite, quem irá ajudá-lo, quem serão os responsáveis? Seus pais, seus ex-amigos, os enfermeiros de um sanatório? Portanto, creio que ficará preso ao poente; mesmo havendo 0.01 por cento de chance de o senhor começar a ver que o poente nada mais é do que um sol raiando.

--- Por favor pare! Pare de me chamar de senhor!

--- É mais por educação, meu caro.

--- Não creio que isso seja educação. Do contrário, talvez a moça do 102 não perguntaria: "De que cidade você está falando?"

--- Você tem tido fantasias com a voz da moça do 102? Quer ir pra cadeia? Devia saber que está no código penal que quem tiver fantasias com a voz da moça do 102 pegará de 1 a cinco anos de prisão. E no seu caso, seria em cela coletiva.

--- Estou indeciso e indecisão é coisa do mal. A Bíblia fala...

--- Eu sinto muito. Garçom! Garçom! Não precisa mais trazer a bebida que lhe pedi antes deste... deste cavalheiro chegar. Deixe o Blood Mary para outra vida. Vou-me embora. Então, meu caro, se você reagir o quanto antes, tudo se normalizará. Você não têm estrutura, não têm estrutura para suportar as suas preferências atuais.

--- Espero que...

---Calma lá. Pense muito bem antes de me rogar uma praga ou acabará em um quartinho de periferia. Parece que só assim criará juízo, forças.

--- Eu sinto muito também. Sinto muito pela decepção que lhe causei. Que tal nos encontrarmos no dia do juízo final?

Meio choroso, levantou-se primeiro que a pessoa da voz e saiu correndo do restaurante. Era assim agora: saía correndo dos mais diversos lugares. Nos supermercados, largava tudo no chão e ia embora; nas festas, brigava e sapateava. Saía correndo entre brumas que subitamente se formavam. O presente era uma cidade estrangeira. Faltava-lhe inteligência para decidir. Lembrou-se das fubecas que atirava sempre nas escadas, na infância, e a lembrança do som delas batento contra o mármome o fez tapar os ouvidos, assim como a pessoa da voz talvez tapasse se ele engasgasse no restaurante caso não tivesse o suco, o suco, o suco! O poente, o poente chegava; talvez por muitos anos estivera nele, e só agora, só agora veio a descobri-lo dentro de si mesmo. Claro que era bem feito, que era merecimento! Um poente prematuro, ou quase.