BONITO NA FOTO
José de Castro
 
 

De longe, ví um cavalo seguido de perto por um homem. Ambos tomaram a estrada diante de mim. Era muito cedo, mal saíra o sol e eu dava início ao meu quarto dia de caminhada em direção à Aparecida. acelerei os passos e o alcancei. Ele e eu, lado a lado, mudos. Apenas um aceno e um bom dia. De repente, aponta com sua mão enrugada em direção a uma velha tapera isolada no meio de uma lavoura de cana e balbucia: "ah criatura, não imagina o que se deu com ele", dirigindo-se a mim, como se eu fosse alguém da sua intimidade, continua: "O coitado lutou muito, de sol a sol, seca e verde. De par com sua Maria semeou os filhos naquele pedaço de chão. Ela sim, também era de muita fibra. De vez enquanto, emprestava a esperança dela que tinha de sobra e os dois enfiavam a cara na labuta. Depois de um tempo a dificuldade foi chegando, morou no que era dele até que o banco apertou e, no aperto, foi obrigado a botar fora por uma ninharia. Tinha umas letras no banco e quando venceu a última e ele não deu conta de pagar, começou a agonia. Não foi só ele não, muita gente, eu só não acabei do mesmo jeito porque nunca quis saber de banco. Foi p`ra cidade, sem saber o que fazer, acompanhando os filhos que se mandaram na frente." Mais alguns passos adiante, parece que para colocar as idéias em ordem, prossegue: "agora tem o seu pedaço de terra novamente, uma cova rasa no cemitério, enterrado, teve vida curta na cidade, ainda por cima foi fazer uma operação na vista, catarata, mas não deu certo, dali p`ra frente desistiu desse mundo. Lembro da saída dele daqui, como se fosse hoje, pôs sentido em tudo, calado, virou as costas e saiu. Quando chegou na divisa abriu a porteira de fora, a porteira que separava o que era dele do que era do Zi da Nicó. A dor que sentiu não quis que ninguém visse. Se virasse p'ra trás, ia perceber a terra fugindo dele. Empurrou o batente, sentiu a tremura do coice no moirão como um estrondo pelo corpo. Não era o barulho que ouvia sempre da velha porteira por anos e anos. O baque dela era gemido, era urro de desespero, despedida. Não teve coragem de olhar para trás. Seguiu em frente, sempre em frente, com as pernas bambas, quase não resistindo, com muito sacrifício conteve a tentação do último adeus. Por pouco não põe o olho na nuca. Mesmo que desabasse nele toda a água do S. Francisco, não seria capaz de enxaguar as mágoas que carregava contra o banco que tomou sua terra. Os miúdos não têm defesa, o banco toma, os grandes ajustam advogado e vai rolando a dívida toda vida. Nunca mais pisou por estas bandas. Encostou na rua para envelhecer nas horas e nos dias a espera de não sei o quê. A gente sabe que não pode banir a roça do peito e nem sumir com aquela dor fina, aquele filete de aperto que domina o sujeito quando ele dá adeus ao pedaço de chão da sua vida. Quando falava nisso sua voz era funda, vinha lá de dentro, custava a sair. O Sr. sabe, o homem é do tamanho do lugar onde vive."

-- E esta cruz aqui do lado, sabe de quem é? Indaguei.

-- Se sei!... É do finado Marcolino, morreu de repente. Foi encontrado caído, de bruço, com uma mão no cabo do cabresto e a outra na altura do peito. O coração não agüentou, nem fugir o cavalo fugiu, vinha do Brocotó, o lugar onde plantava uma roça. O coitado nem chegou em casa, foi o barbeiro, doença de chagas. A labuta diária na beira do rio consumiu a vontade dele. No fim do dia, jogava sua carcaça em cima do cavalo de qualquer jeito. Dali para o catre era só o tempo de apear, lavar a cara, botar o canto do olho na mulher e desmaiar até a primeira luz da manhã seguinte. Bem cedo, fazia a arrumação daquele mulambo de corpo para um novo combate. A vida era essa, uma vida sem graça, cinzenta, empurrada para o não-destino. E assim a gente daqui vai levando a vida.

-- O Sr. tem estudo?

-- Estudo, estudo não. Só o terceiro ano primário feito com o professor Quincas Lacerda na casa dele. Na ocasião não tinha escola.

Acho que ele tinha razão quando se referia a não ter frequentado escola, mas não ter escolaridade para ele não fazia lá muita falta, possuía muito mais do que isso, a sabedoria, o conhecimento das coisas. Conhecia o mundo. Percebia-se na sua cara.

A nossa conversa enganava a subida. Embora as frases ficassem mais curtas e mais intercaladas com a respiração mais e mais ofegante, a marcha prosseguia. Meu companheiro, apesar dos seus setenta e dois anos, permanecia inteiro. Eu nem tanto, os sinais de sufoco eram visíveis. As palavras não fluíam com facilidade. Quando eu estava para reduzir a marcha, ele toma uma atitude que me surpreende. Agarra-se ao rabo do cavalo à nossa frente como quem pega uma carona. Parece que faz aquilo com frequência, naturalmente. Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, vira-se como quem oferece a salvação e fala:

-- Não quer a metade do rabo?

-- Sim - respondi, ao mesmo tempo em que lançava mão daquela oportunidade.

E foi assim, ao lado daquela criatura cheia de sabedoria, dividindo com ele o rabo do cavalo, que subi o resto do morro. "Nossa vida é feita de momentos surpreendentes, quantos mistérios escondidos nestas fraldas de serra.", pensei.

Saquei minha máquina, não podia deixar de registrar. Um momento como este não pode passar em branco. Fotografei-o sozinho, depois com seu cavalo. Despedí-me dele e peguei meu caminho.

Hoje, lembrei dele sem nenhuma razão aparente e fui buscá-lo nos meus guardados. Para mim, continua muito BONITO NA FOTO.