A MENINA DO GATO
Sharon Ratis
 
 

Eu fora escolhida por ele.

Gato é muito diferente de cachorro. Não falo da diferença óbvia, mas de outra, muito sutil. O cachorro, geralmente, somos nós quem o escolhemos. O gato, não: é ele quem nos escolhe. Ele é quem se torna dono, absoluto.

Logo na primeira noite, percebi que ele era diferente. Não era igual aos outros que dividiram o espaço comigo na minha infância. Filhotes costumam chorar, reclamar a ausência da mãe, estranham a mudança de ambiente. Ele, não: dormiu a noite inteira.

Encontrei-o através dos anúncios de classificados de um jornal: "vende-se gatinhos persas. Simpáticos e brincalhões". Eu não queria um gato de raça, pois para esses, nunca falta um lar, mas essa foi a condição imposta para que eu pudesse ter o meu gato.

Fui buscá-lo com urgência.

Na casa, havia quatro filhotes. Um soriano, um siamês e dois persas. Que de persa mesmo, só se tivessem os genes herdados de um parente muito distante.

Encantei-me com o soriano. Soriano é aquele gato sem raça, tigrado, de cor indefinida. Gato tem de ter aquela coisa boêmia, vira-lata mesmo, sem raça, sem nada. Contudo, ele jamais entraria em casa, soriano não é raça: é pedigree para ausência de raça!

Os dois "persas" brincavam entre si, aos meus pés. De pêlo preto-e-branco, quase idênticos. Pequenos detalhes os diferenciavam. O que me escolheu tinha uma mancha branca ligeiramente falhada nas costas e um triângulo negro no queixo. O peito, a barriga e as pontas das patas eram brancas.

Não convenceria ninguém de que ele era um gato persa legítimo.

"O que é que eu posso fazer para você ficar bonito na foto e se passar por persa ?"

Antes de entrar em casa, dei uns tapinhas, de leve, em sua cabeça - abaixaria as orelhas. Puxei os pêlos de suas bochechas - achataria o rosto. E arrepiei seu pêlo, para que parecesse mais longo. Assim, com muita sorte, ele lembraria um persa. E não é que ele ficou mesmo bonitão na foto ?

Observá-lo era uma festa! Brincava com bolas de papel, entrava no vaso para as plantas, derrubava o carrinho de feira sobre si. No Natal, quantas bolinhas da árvore ele quebrou.

Acompanhei tudo. Preocupada. Orgulhosa. Era a primeira vez que eu, sozinha, pertencia a um gato.

Ao seu primeiro passeio no telhado, presenciei com o coração na boca. Ele vai cair, meu pai! Não caiu. Divertiu-se com meu pânico.

Seu crescimento me surpreendia. Tão depressa! Quando chegou, cabia na palma da minha mão. Hoje, quando fica de pé sobre as patas traseiras, ultrapassa meu joelho.

Seus olhos são de ouro derretido, com uma fenda indecifrável no meio. Ficam vermelhos, no escuro. Enigmáticos.

Não o tratava como a um bebê, do jeito que vejo algumas pessoas tratar seus animais. Também nunca o tratei como um animal de estimação. Ele era meu companheiro. Alguém que. É certo chamar gato de alguém ? Este, a quem pertenci, era alguém. Alguém que me esperava chegar todos os dias. Alguém que me conhecia profundamente. E que eu conhecia também: sabia quando ele miava porque estava com fome ou porque queria atenção ou porque queria me chamar.

Sua personalidade era um caso a parte, era isso que o tornava tão especial. Nada de submissão servil ou manha interesseira. Não aceitava qualquer cafuné. E só ia ao colo de quem ele escolhia e na hora em que ele queria. Nunca consegui segurá-lo por muito tempo. Era anti-social, detestava ser exibido às visitas. E que nenhum estranho ousasse incomodá-lo.

Quando chamado, só atendia se esta fosse sua vontade. Ele sabia que era com ele, mas dava as costas, imponente. Deixava-se chamar.

Não era muito dado a fazer carinhos, demonstrar afeto, mas me amava. E eu o amava do mesmo jeito. Eu podia ver em seus olhos de pó de ouro. Via todos os seus sentimentos. Então bicho não sente ? Via sua mágoa cada vez que lhe dava um banho. Quando o levava religiosamente para tomar as vacinas, seu olhar me acusava de traição. Imperdoável. Dias sem me dar atenção. Por outro lado, via-o vibrar quando brincávamos. Deixava que ele me arranhasse inteira, vivia com os braços lanhados e os exibia com orgulho. Porque não havia maldade. Porque era só brincadeira.

Quando pequeno, ele adorava caçar baratas. Vinha me mostrar. Entrava sorrateiro, com a "inimiga" na boca, ainda viva, esperneando. Eu morria de medo. Ele, de satisfação.

Não tinha dele a amizade que teria de um cão e, na época, ressentia-me disso. Hoje, entendo. Ele me via chorar, motivos fúteis. Dava-me as costas, em sua soberba, quase ofendido por ser dono de alguém tão frágil. Se fosse um cão, viria fazer festa, tentar me consolar, lamber minhas lágrimas, eu pensava.

Era mestre na arte de querer toda a atenção do mundo só para si. Bastava abrir um livro e lá vinha ele, como quem não quer nada, e se deitava, por cima. E me fitava com seu olhar mais inocente.

Adorava esperar eu me deitar. Então, prostrava-se diante à porta do quarto, só para me fazer levantar da cama e ir abrir. Fazia de propósito. E eu ia. E eu lhe fazia todas as vontades. Cedia aos seus caprichos

Hoje sinto o coração apertado por ser obrigada a vê-lo partir. Não posso mais mantê-lo comigo. Sua personalidade marcante irrita os "outros" - medíocres demais para perceber que ele nunca seria servil, obediente e submisso. Maltratado, posto na rua. Numa cidade maldita, estranha até para mim.

Não há mais portas para abrir no meio da noite fria. Não preciso mais dormir encolhida - o cobertor e a maior parte da cama era dele. Não tenho mais ninguém fazendo festa porque eu cheguei. Os braços estão lisos, não ficou cicatriz. Claro que não ficou, era só brincadeira.

Só restaram duas ou três fotografias. E a saudade. Um final que eu previra desde que fui buscá-lo num fim de tarde, debaixo do temporal.