O MOÇO CARONEIRO
Flavio Luengo Gimenez
 
 

Vou contar uma história. Sou estradeiro,sim senhor. Já vi muita coisa, já vi por de sol no Pantanal, já tive malária em Belém, já ví inundação no Pontal. Coisa mais linda o por do sol: As garças enchiam o céu de cores, os reflexos do sol na água dourada e na lagoa os jacarés dormindo feito pedra...Nessas horas eu penso no mundo, danado de grande, companheiro meu de caminhada. Olho para meu cavalo de aço. Ele me leva na boléia, ele me faz ver esta maravilha de caminho, vasto e cheio de coisas de Deus e da Terra. A imagem da virgem me acompanha, bem na minha frente, bem onde eu tenho meu rádio, onde ouço a voz de outros como eu, a caminhar pelo mundão de nossa gente. Bem na minha frente tem um retrato, o retrato de Damiana, minha amada esposa, mãe de meus filhos, Alexinho e Alexandrinho (como eu os chamo). Ao lado deste retrato, mais uma imagem, a de Cristo e grudada no parabrisa, o retrato de minha finada mãe. Sim, porque meu pai, esse nem conheci, caiu no mundo e deixou a velha com seis meninos para criar, um ainda na barriga. Ela empinou o rosto, foi em frente...Somos todos irmãos, se a gente pensar bem. Ela se foi, mas fica no coração a presença dela, seu riso suave e a retidão de caráter que nos formou. Somos em cinco agora, um de nós morreu de diarréia. Mas os cinco que somos, devemos à fortaleza de nossa amada velhinha.

Como eu dizia, o caminho da gente tem coisas tão lindas que o céu e a terra se confundem. Mas naquela tarde, eu estava a caminho da Chapada, para levar uns móveis que uma pousada nova comprara de um fornecedor de meu patrão. Lá fui eu, a responsabilidade de chegar inteiro:

--Veja se anda de dia!...Nada de sessão coruja!

--Veja lá hein! Qualquer prejuízo, já viu...

Tinha parado no posto que sempre usava para dormir ou comer. Entrei no restaurante, o tilintar da louça, a fumaça e o cheiro bom da boa comida, destas que só de sentir o aroma, já se mata a fome. Sentei.

--O de sempre, João? (esse é meu nome)

--Sim, meu camarada. Do jeito que eu gosto.

--E o regime?

--Ainda é o democrático...

Gargalhadas. Mas o prato estava uma delícia, energia para subir a serra, que eu ia precisar muito. Foi lá, neste exato instante, que eu vi o sujeito, meio que de lado. Um cigarro pendia de sua boca, o óculos escuro e espelhado disfarçava seu olhar. Precisava ter ido ao banheiro mas alguma coisa me deteve, até que ele chegasse perto. Nada de especial, só a roupa escura meio aveludada. Olhei para o chapeiro que deu de ombros. Não sabia quem era.

--Posso me sentar ?

--Pode sim.

--Estou precisado de carona.

--Para onde você vai, camarada?

Ele apontou, vago, para as montanhas não tão distantes que dali se viam.

--Para aquele lado. Você vai para lá?

--Se vou...Se depender de mim, chego logo.

Numa olhada mais rápida, ele parecia inofensivo. Magro, fumava sem parar. Rosto miúdo, pele fina e olhos penetrantes. Na cabine, o silêncio só se quebrava pela mudança das marchas ou pelas freadas, em trecho de serra tem de ter atenção nas ribanceiras e penhascos. Ele notou meu olhar para suas mãos.

--Quer um? Ou te incomoda que eu fume?

--À vontade, não careço não.

--Diga uma coisa.

--Sim senhor, digo.

--Você não sente a solidão te pegar? Quero dizer, a solidão deve fazer estrago...Sua mulher?

Um arrepio me percorreu a nuca, quando aquela mão magra apontou para a mãe de meus filhos.

--Sim.

--Sente falta? Quero dizer...Falta física, falta da presença?

--Quem não sente? È minha vida, meu caminho dourado...

Não sei se foi impressão mas ele teve um tremor quando olhou a imagem de Cristo e a da Virgem. Afastou os olhos, como se um brilho lhe cegasse os olhos.

--Acredita nisto aqui tudo?Precisa disto para viver?

--Nunca se sabe o que vem pela frente. Estou sempre preparado nesta vida de corrida que levo, minha mãe sempre me dizia...

--Sua mãe está morta. Passou desta para melhor e você com esta besteirada pendurada. Francamente.

--Cada um, cada um. Se vosmece não acredita, eu de minha parte respeito, mas não quero que se ofenda não, é vida que levo, de modo que...

--Sabe nada, não, capiau. Sabe nada, sabe coisa alguma desse mundão, sempre olhando os pássaros quando devia de olhar coisa mais importante. Sabe nada não.

Decididamente incomodado, eu acelerei o passo para chegar mais rápido num trevo conhecido. Ali ele saltaria, quer quisesse, quer não.

--João, João...Belo nome, um dos que cercaram este aí ( apontava para Jesus...). Bom, não adiantou muito!

--O senhor desce aqui.

--Muito gentil de sua parte. Mas sempre que precisar, use meu cartão!

O caminhão parou e ele desceu suavemente, só aí notei os seus passos silenciosos. Quase colado à roda, ainda sibilou:

--Me procure que eu te acho!

Persignei-me e arranquei com meu cavalo de aço. Olhei pelo espelho, nada de tinhoso, nada de nada mesmo, só estrada e ventania e pó. No banco, brilhava o cartão do moço magro.

Voou pela janela junto com o maço de cigarro ruim.