NO CAMINHO DO CHÃO
Gustavo Colombini
 
 

— Êta, homi! Fosse brabo montava cavalo!

O figura largava a piada no ar e permanecia sério. A graça tava no jeito que ele olhava pro chão enquanto contava o fato, balançava o corpo imitando o jagunço do gracejo. Bons eram esses momentos, a mente cansada distraía, a mente distraída descansava. Quando no repouso, três ou quatro outros companheiros deixavam o corpo largado na cadeira à beira da estrada, de coruja, recuperando força, rindo um pouco de tudo, rindo alto até da desgraça e do cansaço. Era sempre jeito encontrar com amizade pelas paradas, pra papear à toa, trocar notícia, cruzar informação. Vezes que rondava indignação, maldizer com o serviço. Juntavam-se todos pra discutir, falar alto, cuspir no chão. Aproveitavam pra comer alguma coisa, lavar o rosto, bater poeira, ouvir uma música. Mas às vezes a parada era cheia de silêncio. O olho acompanhava a poeira rasa, o coração viajava proutro lugar. Era vida sofrida, feliz, cheia de sonho, de estrada, de chão e de saudade e canseira. E era assim com todos ali. Quando a alma começava a estranhar, voltava logo pro caminhão, casa de roda, amor de ferro. Insistia no erro, paixão que é paixão, também é vício.

— Entrou sem dar trégua, carrapato chato. Num parou um minuto sequer, falava do irmão, da muié, do tempo, do sol, da chuva. E perguntava da minha vida, do caminhão, — resumia batendo o pé no chão — e ouvindo num dizia nada. Foi até a paciência cabar todinha. Parei na estrada, falei que tinha entortado a geringonça toda, culpa dum cascalho no motor, coisa absurda, precisava dar uma olhada. Desceu o compadre virando a cara, olhando pra roda. Falei, amigão! Vai procurando aí que eu vou dá um jeito lá dentro — caíam no riso fácil, continuava a história engasgando na risada. Enquanto o jagunço tava agachado apalpando o chão, soltei a rédea, saí na rapidez, gritando motor. Levantou veloz, abriu os braços. Graça tava na cara do infeliz. Vai ser chato, meu amigo! Bagunçava o horário, dizia que tempo é precioso, riam e voltavam logo pro lugar de motorista. Tinha sempre sinfonia na partida.

Na cozinha improvisada do caminhão, carregava tudo. E quando a fome castiga, pára e prepara o almoço. Nem sempre tem horário certo, nem sempre tem horário. Muitas vezes espera a cidade próxima e güenta pouco do estômago que dói. E se desenrola, na rapidez das horas. O fogão, o arroz, o feijão, a lingüiça defumada, a carne seca, o horário apertado, o gosto amargo de tudo, da saudade, do cansaço, mastigado e engolido como o dia, que acabava sem aviso, vezes rápido demais.

Vinha noite, vinha escuro, vinha saudade. Deixava a foto da família ali do lado. Curava a solidão da alma, mas solidão também batia na carne e no osso. Aumentava o vazio da estrada. Ia acompanhado pelo pensamento, pelo escuro da terra. Era gosto por dirigir à noite, mas tinha conseqüência. O ar era mais fresco, o chão mais perigoso. O senso era mais livre, a visão mais trapaceira. Enquanto estivesse em movimento, estaria seguro. E ficava logo amigo daquelas sensações. Coisa boa abusar do infinito. Soltando a mão pra abrir bem a janela e respirar fundo junto com a canseira. E ficava assim, na rodagem da carga pesada, por quatro, cinco horas. Quando o sono vinha bater na cabeça, como vilão de novela. Era normal cochilar ali mesmo, com o pé no acelerador e a cabeça pesada, num travesseiro duro. Quando o cansaço é muito, até o vento fica macio. Mas era erro continuar. Parava no primeiro posto pra dormir, dez ou quarenta minutos. Não dava tempo de sonhar, caía já de volta no tapete preto. Teve vez que já no erro insistiu. A cabeça pesando podia nem ter acordado de susto. Ouvia sempre notícia triste, davam em seco. Perdeu já amigo caminhoneiro assim, perdeu já o sono de uma noite inteira assim. Partia sem medo, só embarcado no perigo do acaso. Na vida, passou fome, passou sofrimento. Agora passa saudade. Nem melhor, nem pior; não dava pra comparar seca e falta de chuva. Vida fácil é coisa de filme. Morrer na hora certa é que é final feliz. E era bem no erro que pensava no filho, na família. Motivo tinha de sobra pra voltar vivo. Quando dava noite mesmo, naquelas horas, só o vento é que corria.

— Você tá no mundo e ao mesmo tempo tá fora dele. Medo vem até com zóio aberto. É que, às vezes, o consciente é que desliga. E num tem jeito.

Sombra sozinha, a estrada era o chão mais apertado. Passou já horas sem ver uma alma viva passando por ali, hora só de barulho do motor e estalo da carga. Silêncio bom era silêncio rápido. A solidão trancava bastante a alma. Vinha voz só de dentro. Olhava pra foto da família, pro banco vazio. Ia lembrando do tempo que permanecia em casa, no lar fixo. Do pai, também caminhoneiro, e do sonho que cresceu com ele. Do filho subindo no banco, agarrando a direção, viajando na imaginação. Levava tempo voltar pro normal, o filho no colo, guiando sonho pronde o pai não queria que guiasse. E quando o filho dizia sorrindo que queria destino igual, desconversava. No fundo da cabeça, lutava e relutava pro filho querer profissão outra.

— Respeito tem pouco, a vida começa a ser guiada por força maior. Deixa de existir vontade, mas importância e rotina continuam a mesma. É sempre trabalho que te leva, sempre saudade que te traz. É assim sempre.