MISS CARAPICUÍBA
Luís Valise
 
 

O passado entrou pelos meus olhos como a chuteira do beque na canela do atacante. Não cheguei a rolar no chão porque não sou fingido, mas que doeu, doeu. Eu estava no metrô, a caminho da Rodoviária, quando na estação Sé entra uma loira de meia-idade, e senta no banco à minha frente. Normalmente eu não presto atenção em mulheres de meia-idade, que pra cavalo velho capim novo. O que me chamou a atenção foi o sapato surrado e barato, com um rasgo no lugar do dedinho, para aliviar o calo que ficava de fora. Primeiro senti pena. Os muito pobres sempre me dão pena. Foi quando subi o olhar para o seu rosto que a coisa me pegou como uma porrada. Era ela. Mais velha, mais gorda, mais fodida, mas era ela. A primeira Miss a gente nunca esquece.

Eu era moço, a noite era uma festa, e na boate tinha um pouco de tudo e muita puta. Encostado no balcão, copo na mão, cigarro entre os dedos, eu caçava. Não tinha pressa. Depois da lua, o sol nasceria novamente, e a vida não era mais que isso: sol e lua, ou seu contrário. As mulheres iam ficando mais atraentes a medida em que as doses se sucediam, de maneiras que lá pelas tantas estavam todas maravilhosas, e meu objetivo se resumia a trepar com qualquer uma. De graça.

Não vou aqui mentir, dizendo seu nome. Não lembro seu nome. Lembro que ela apareceu, tímida e meio assustada, de braços com uma dessas morenas matadoras que aceitam até obturação de ouro. Nossos olhares se cruzaram; eu sorri, ela quase, e logo vi que a noite estava salva. Ofereci um drinque, a morena praticamente empurrou-a em minha direção. Pra facilitar vou chama-la Lenira.

- Oi, Lenira, toma um uísque comigo?

- Tomo.

Batata. Iniciante. Puta véia não bebe em serviço. Era bonita pra xuxu. Loira, olhos verdes, nariz, boca, dentes, peitos, tudo em cima. Sorte-grande. Papo vai, vem, primeira vez que saía "pra arranjar namorado", quem sabia do assunto era a amiga, pistoleira com apartamento e carro do ano, tudo com a xereca. Fui indo na onda, dando corda, pedindo mais uísque. A morena veio dar um toque:

- Lenira, cuidado com a bebida.

Mas a loirinha gostava do goró, e depois da terceira dose já não ligava pra minha mão nas suas coxas. Eu achei que estava na hora, dei o bote:

- Posso te levar pra casa? Onde você mora?

- Carapicuíba.

- Onde?

- Carapicuíba. É longe. E eu moro com a minha mãe.

Tentei sair fora:

- Que pena...

- Por quê?

- É que eu tive uma idéia... Mas acho que não vai dar...

- O que é, fala, o que é? Inventei na hora:

- Queria te levar pra praia. Passar o dia. Mas precisa de roupa, biquíni...

- Não tem problema! Minha amiga tem, ela me empresta!

- Que amiga?

- A Sheyla. A morena que me trouxe. Ela mora aqui no centro.

E agora? Eu não queria ir pra lugar nenhum, só queria dar o fora, saltar de Carapicuíba, arranjar alguma coisa mais perto. Os olhos da loirinha brilhavam:

- Vamos, vai! Faz tanto tempo que eu não vou pra praia...

Mas eu não tinha apartamento na praia, não queria guiar até Santos e ir a um motel, muito sacrifício. Só queria sair fora. Seus olhos ficaram cheios d'água:

- Vamos? Vamos?

Dancei:

- Vamos.

Ela foi atrás da morena, falou, pediu, encheu o saco, a outra cedeu, e ela voltou com a chave do apê na mão:

- É rapidinho: eu subo, me troco, pego o biquíni e a gente vai.

Parei na frente do prédio, ela subiu. Pensei em dar de pinote, foda-se, tchau e benção, mas como é que eu iria aparecer na boate outro dia? Levar esporro da Sheyla? Ser chamado de cagão? O negócio era encarar. Ela desceu de calça comprida, uma sacola na mão: biquíni e toalha. Fui pra minha casa, deixei-a esperando no carro, saí com outra sacola: calção e toalha. O dia começava a clarear. Aonde eu ia comer a loira?

Em Santos, na praia do Gonzaga, havia um lugar pra gente trocar de roupa. Quem não tinha apê (quase ninguém tinha) e não ficava em hotel (quase ninguém ficava) fazia um bate-e-volta: se trocava nas cabines, onde as roupas ficavam penduradas em pregos nas paredes, e ia pra praia. À tarde voltava pra cabine, destrocava a roupa, e vinha pra São Paulo. Se ela pensava que iríamos pra um apartamento, problema dela, porque toquei direto pras cabines. Acho que ela não conhecia, porque não disse nada. Só ficou calada, um pouco envergonhada, porque os caras já ficaram de olho, ouriçados. Deixei ela entrar e se trocar primeiro. Saiu de biquíni. Um avião. Entrei também, e saí de calção e camiseta. Fomos direto para a areia. Umas oito da manhã. Praia deserta, ninguém, ninguém. Estendemos as toalhas. Deitamos. A turma que ia pro trampo passava nos ônibus, via aquela dupla na areia, só podia pensar que éramos dois gringos exóticos.

Dez minutos de silêncio, começou a incomodar. Tentei puxar assunto, qualquer assunto, a loira quieta. Perguntei se tinha algum problema:

- Tô com fome.

- Fome? A essa hora?

- É. Pelo menos um café.

Tinha uma padaria na avenida. Pegamos as toalhas, fomos pra lá. Senhoras na fila do pão. Ela entra de biquíni. O dono olha desconfiado. Sinto meu rosto pegando fogo. Encomendo:

- Duas médias, e dois sanduíches de queijo.

No balcão da padaria, ela de biquíni, eu de calção, a velharia inconformada. Sinto um gosto horrível na boca. Minha língua parece um torresmo molhado, tanto uísque, tanto cigarro. Não sinto o gosto do sanduíche. Ponho bastante açúcar na média. Não olho muito pra Lenira. Voltamos para a praia. Logo o sol incomoda. A areia incomoda. Sinto que vou perder aquela gostosa. Paciência.

- Vamos voltar?

- Vamos. Já estou cheia de praia.

Chegamos nas cabines, os caras ficam cochichando. Não dou bola, peço minha chave e vamos nos trocar. Agora entramos juntos. Lá dentro é apertado. Minha boca está um lixo, mas foda-se, dou um beijo na boca da Lenira. Sua boca também está um lixo. Enfio a mão dentro do seu biquíni, aperto sua bunda. Peço pra ela tirar o biquíni. Ela tira. Fico de boca aberta. Ela explica, envaidecida:

- Eu já fui Miss.

- Miss o quê?

- Carapicuíba. Três anos atrás.

- Que jóia! E foi legal?

- Não. Os caras só queriam me comer.

- Pelo menos deu pra você ganhar alguma coisa...

- Um maiô Catalina.

Começou a me dar um remorso, ficar com pena dela, a coitada só se fodia, esses putos aproveitadores, tão novinha, tão bonita, abracei Lenira, quis conforta-la, mas ela ali peladinha, encarei outro beijo na boca com gosto de brejo, e tracei. Ali, na cabine minúscula, os caras deviam estar ouvindo do lado de fora, mas ajeita daqui, ajeita dali, demos um jeito, e foi que deu. Não sei como foi pra ela, pra mim foi meio meia-sola. Ela merecia mais, e melhor. Toda Miss merece mais e melhor. Saímos da cabine na maior cara-de-pau, paguei, entramos no carro e voltamos pra São Paulo. Em silêncio. Deixei-a no apê da matadora. Nunca mais.

E hoje, aqui, no metrô. Encaro-a. Tiro meus óculos escuros. Procuro chamar sua atenção. Suas mãos estão grossas, unhas sem cuidado. Cabelo quebradiço. O quê a vida fez com ela? Forço um pigarro. Ela me olha. Indiferente. Um estranho. Como não me reconheceu? Porra, "Eu sou aquele cara da praia!", sinto vontade de gritar. Eu acho que não mudei tanto assim. Finjo outro pigarro. Ela olha de novo, e de novo não vê ninguém. E se eu disser seu nome, -Lenira... Mas seu nome não é Lenira, não sei qual é seu nome. Só sei que te comi naquela cabine minúscula, lembra?

Vejo que a estação Rodoviária já passou, perdi minha estação por causa da Lenira. Ela está mal-tratada pela vida. Parece muito só, a mãe deve ter morrido, não deve ter ninguém. Estamos chegando no ponto final. Ela levanta. Suas pernas engrossaram, agora parecem mais curtas. Levanto também, atrás dela. Na rua vou dar o bote. Ela tem que lembrar de mim. Nem que eu tenha que pagar. Pôxa, ela já foi Miss.