NADA CAI DO CÉU
Adriano Micheletti
 
 

Ademerval era um sujeito discreto. Vivia espartanamente entre o trabalho e a casa, e a casa e o trabalho. Seu meio de locomoção era uma bicicleta, daquelas de trabalho mesmo, barra circular, sem marcha ou outros luxos, apenas os enfeites. Ah, os enfeites eram de amargar: tufos de fitinhas plásticas coloridas saindo das manoplas verde-limão transparentes, macarrõezinhos em todos os aros das rodas, selim com o símbolo do Palmeiras e belas franjas verdes, e uma plaquinha de metal no pára-lama traseiro, como uma placa de veículo oficial, onde se lia "Precisa-se".

Dada a discrição de Ademerval, quase não se reparava na plaquinha. Quando chegava em casa, numa rua pobre, de um bairro pobre de uma cidade pobre, na esquina já desmontava a perna direita sobre a bicicleta e deslizava apoiando o pé esquerdo no pedal até o portão de entrada, que era aberto entre um rangido e outro, com a mão esquerda, enquanto a direita sustentava a bicicleta, que pulava os degraus alegremente e estacionava na varandinha logo antes da entrada da sala.

No trabalho Ademerval era altamente eficiente no seu cargo de empacotador de baterias automotivas, ninguém produzia como ele. As baterias de todos os tamanhos e pesos escorregavam pelas longas esteiras mecânicas, chegavam em sua bancada onde recebiam o invólucro de plástico termo-encolhível, com grande habilidade e eram colocadas num soprador de ar quente que fazia o plástico encolher aderindo totalmente na bateria. Era preciso esforço físico, o que agradava Ademerval. Nem uma palavra durante o turno de trabalho, concentração total que fazia de Ademerval, o número #1 em produtividade.

Sem amigos, sem parentes vivos nem ninguém para conversar. Rotina, pura rotina era a vida de Ademerval. Não que temesse se envolver, simplesmente não tinha em que, nem com quem envolver-se. Julgava-se feliz. Nada de que reclamar, ninguém para dar satisfação.

Não sabia, mas era observado.

Adelaide, vizinha de fundos, volta e meia colocava a cabecinha por cima do muro a admirar a simplicidade de Ademerval lubrificando a bicicleta enquanto fumava um cigarro e tomava uma cerveja ouvindo música. Já tinha até reparado na plaquinha "Precisa-se". Fez que fez que certa feita foi percebida, cumprimentada e conversaram.

Conversaram, riram, passearam e conheceram-se, antes de Adelaide fulminar a incessante questão: - Por que a placa "Precisa-se"?

- Vivia infeliz por achar que sempre estava a precisar de alguma coisa, um carro, uma motocicleta, uma casa, mais dinheiro. Todo o tempo achava que precisava de algo mais para ser feliz. Passou o tempo, passaram pessoas que eu amava, passaram grandes dificuldades financeiras e eu fiquei. Percebi que para ser feliz não preciso de nada além do que tenho, mas preciso de tudo que possa ter, desde que pelo que sou. Mandei fazer a placa para que nunca mais me esqueça, que nada cai do céu.