INDIGESTÃO
Carla Deboni
 
 

Pés no chão, beliscões no escuro para ter certeza de que a ilusão não é de fato palpável. Ainda ensaio reproduzir o jogo da amarelinha no quintal e é em vão que tento esboçar os traços retilíneos de como imagino o caminho. Esqueço-me de suas curvas temperadas, já que não tenho compasso. Fora a poeira bronzeada no final de mais um abril desconsolado, nenhuma testemunha imagina o desmazelo desse renascimento. Mesmo a bicicleta que passa na calçada da frente, preocupada unicamente com seu movimento de rotação.

Se a porta está fechada, tenho como única solução abrir uma janela. Ou um buraco no teto. A altura assusta, não pelos metros que se impõem diante do olhar, mas pela forma diminuta das pessoas que se movem lá embaixo, bonecos minúsculos numa batalha naval depois do dilúvio. O desejo de gritar, mesmo que os ouvidos estejam um pouco distraídos, divertindo-se com um barulho qualquer. Telefone nas mãos, dedos hesitantes diante do número tantas vezes evitado e por tantas mais repetido.

Qual é minha surpresa ao caminhar e perceber que manco. Algum membro me foi amputado, embora eu indague o corpo sem uma resposta definitiva. Numa rápida vistoria, descubro: falta-me a saliva com o último cuspe daquelas sílabas que você me fez engolir.