BABACAS, POESIA, MALA DE COURO
Eduardo Prearo
 
 

Precisa-se de garçons.

Guilherme não era garçom, mas já trabalhara como cumin. A economia ia bem porque o país não era mais devedor, porém os empregos para os desqualificados pareciam se concentrar especialmente na área de cobrança. Guilherme queria dar um basta aos trabalhos intermitentes; no entanto, esse querer-dar-um-basta tinha mais de vinte anos, talvez a idade do filho que não teve. Tatiane, sua melhor amiga, havia partido dessa para uma melhor. E agora?, pensava a todo instante. A co-dependência, com todos os seus nozinhos, ainda estava em pé, mas a fase das baladas havia terminado. Era até bom porque o champanhe enjoara-o significativamente. Pra gente como Tatiane, essa bebida jamais provocava enjôo. Diziam que as pessoas, no geral, estavam estressadas, prestes a terem úlcera. Elas estavam frias e faziam números interessantes para demonstrarem o quanto eram desconfiadas. Tatiane fora-se sem deixar saudades, mas nervosidade. Pena, porém a vida continuava. Ou a morte-vida. As piadas sobre velório nos trabalhos autônomos sempre acabavam com um "olha, o senhor está aí".

Precisa-se de pedreiros.

Guilherme nunca havia trabalhado como pedreiro. A sua área sempre fora informática. Sim, ele era digitador, profissão para qualquer um.. Havia um emprego para ele, um emprego feito para ele, mas Guilherme não encontrava. Seria no exterior? Se os brasileiros ao seu redor pareciam sensíveis e rápidos, imaginava então os estrangeiros. A sua falta de cultura não lhe incomodava muito. Escrevia mal, mas dava para vez ou outra fingir-se de escritor. Talvez fosse um blefe. Um blefe em tudo. De qualquer forma, escrevia...e mesmo escrevendo na horizontal, sentia-se bem. Por que parara de estudar jornalismo? Devia achar que parara porque na época tinha de trabalhar de madrugada para pagar a faculdade e isso de alguma forma não dera certo?

Precisa-se de ajudantes gerais.

Mesmo para ajudantes gerais era preciso ter experiência. Agora, após os quarenta, quando diziam que a vida começava, Guilherme estava cansado. B. não tivera culpa nisso, mas após a presença de B. na sua vida, havia cansaço, havia vontade de dormir, de dormir um sono de trinta horas. Sem ou com B, que pouco conhecera, não fazia muita diferença. Mas a ausência de Tatiane parecia-lhe terrível. A partir dali teria de pedir, passaria fome. Gastava demais com comida, e não havia tanta necessidade disso. Fora no mês retrasado que descendo a Dra Adma Jafet, o peso das laranjas estourou o saco de plástico, fazendo-as rolarem rua abaixo. Guilherme nada fez, apenas ficou olhando-as correrem dele, atônito. Laranjas correm pelo asfalto, laranjas...

Precisa-se de moças de fino trato para serviços...

Guilherme tinha cara de mocinha. Sim, mas isso não queria dizer nada. Um nariz adunco talvez o tornaria um advogado ou então um ator. Tatiane dizia que ele podia ser um transexual. Ou então, falava ela, por que não comprar um diploma na Sé? Ela comprara tudo lá: certidão de casamento, nascimento, identidade, diploma, etc. Guilherme não sabia ao certo se o nome de Tatiane era Tatiane; talvez fosse outro, Maria ou Mônica...ah, tantos outros. A onda dele agora era assistir a filmes quase gratuitos. Bastava doar um quilo de alimento não perecível e assistir a um bom filme. Seria em França, por exemplo, uma pessoa independente? Não sabia. Lembrava-se de que Tatiane alimentava o sonho de ir à Paris de Maria Antonieta. Guilherme não. Para quê ir a um lugar desses? Olhariam-no com mais estranheza que os próprios brasileiros, na certa. Descartara a idéia de ir para Europa havia muito tempo. Era vagabundo. Cansava-se demais: qualquer coisinha, qualquer esforço o deixava só o pó da rabiola.

Precisa-se de pessoas boas para a prática do bem.

Sim havia empregos estranhos, também. Guilherme não era bonzinho, hajam vista seus aspectos astrológicos vermelhos. Mas tudo azul, diziam, podia resultar em acomodação. Mais do que uma quadratura marte-saturno? Onde estavam os amigos, ninguém lhe queria mal? Imagine, alguém lhe querer mal. Querer mal a alguém não era inteligência. A babaca iria chegar da Austrália a qualquer momento; a babaca iria procurá-lo, dar-lhe ordens, abrir sindicância...A babaca, ah querida! Ai , ai , ai, ai, ai, ai...aaaaaaaaaai. Ficara assim, talvez também um babaca de marca maior, desde de que Tatiane o deixara.

Precisa-se de jardineiros.

Precisa-se de tarólogos.

Precisa-se de cantores ( idade entre 15 e 21 anos ).

Precisa-se de office-boys que queiram trabalhar o dia inteiro e de noite, em uma jornada de 18 horas, e que tenham entre 18 e 21 anos. Documentos exigidos: antecedentes criminais, antecedentes criminais e antecedentes criminais. Paga-se BEM. Ligar para...Sr. Jailson.

Precisa-se de faxineiros.

Era necessário, é claro, ter alguma experiência como faxineiro (2 anos), informou-lhe o segurança. A partir daí, Guilherme desistiu de procurar empregos diferentes. Não, não era um rato, não tinha faro. O queijo havia acabado, mexeram no queijo dele, e agora estava difícil encontrar um novo queijo, um queijo mais saboroso. Havia medo. As economias haviam ido para o brejo por causa dos prazeres momentâneos. Viver à custa dos outros? Como? Só se fosse um pedinte. Tinha de entender que estava vivendo em sociedade e qualquer desobediência a ela, mesmo uma desobediência desconhecida, acabaria em punição, mesmo que em punição oculta. Mas foi no inverno que Guilherme se assustou ao ler os classificados de um grande jornal. Precisa-se de Guilherme Filho. O quê? Guilherme Filho era ele, estavam precisando dele. Seria o anúncio de alguém que desejava amá-lo, casar-se com ele, dar-lhe amor e carinho? Certamente era coincidência, apesar da esquisitice do anúncio. Todavia, levantou-se cedo, milagre, e foi ver se o que precisavam era dele mesmo.

--- Oi, eu vim por causa de um anúncio no jornal, precisa-se de Guilherme Filho.

--- Sim, o senhor é o Guilherme Filho?

--- Sou.

--- Bom, há dezenas de Guilhermes Filhos. Para sabermos se é realmente o Guilherme Filho que estamos procurando, é necessário que o senhor tenha nascido no dia onze de outubro.

--- Sou eu mesmo, eu nasci nesse dia.

--- Mas também há dezenas de Guilhermes Filhos nascidos nesse dia. É necessário também que o senhor tenha olhos verdes.

--- Olha, vamos parar por aqui. Isso é brincadeira, não é? Afinal, quem é o seu chefe, quem está sentado ali naquele escritório, e virado de costas para nós, fumando um charuto? E por acaso eu tenho olhos azuis?

--- Esses não valem. E o Guilherme Filho que estamos procurando não faria esse tipo de pergunta. Ele, aliás, não faz perguntas. Portanto, não deve ser o senhor. Sinto muito.

--- Mas eu pensei...

--- O senhor é daqueles que se iludem à toa, não é? Na certa deve ser daquele tipo que julga. Babaca! Pare de julgar as pessoas, seu monstro.

--- O quê?
--- E por favor... o senhor está infectando a sala. Faxineiras, venham jogar um desinfetante. Um elemento ruim, um elemento ruim!

--- Bom, me perdoe, eu...eu simplesmente acho que estou dentro de um pesadelo. Você deve ter mais direitos do que eu...que devo ser burro...eu...sinto muito também...e tomara que encontrem o tal...o tal...

--- Sai, dá licença para o moço entrar. Como é o seu nome, cavaleiro?

--- Guilherme Filho.

--- Hum...forte, musculoso, rápido, decidido, correto... oh, pode entrar na sala do chefe. Ai, sim, esse sim é o verdadeiro e único Guilherme Filho! E o senhor, vai ficar parado aí me olhando feito uma barata tonta? Sabia que o salário do Guilherme Filho que está naquela sala girará em torno de três mil reais? Vai lamber sabão, camarada! Saia já daqui senão eu chamo os seguranças. E olha que os seguranças daqui são os seguranças de Mary.

--- E olha que os seguranças daqui são os seguranças de Mary.

--- Está me imitando, é? Pois vai ver o que é bom pra tosse. Deixa eu ligar pra uma pessoa aqui...hum...hum...Helen? Guilherme pla brum, pla brum. Espalhe, espalhe, essa vão gostar de murmurar. Pronto, senhor, está sendo feita a justiça. Agora o senhor vai ver o que é se sentir num pesadelo. Vá embora logo, tenho que trabalhar!

--- Por que tal represália, madame? Acho tão pouco e...

--- O senhor me ofendeu e eu não lhe perdôo. Revoltante.

--- Estou indo. Mas, olha, eu tenho umas economias...

--- Duvido. Que que é, achou ouro na rua, seu sem-vergonha, corrupto! Olha só, que gentalha! Querendo me subornar com merreca! Isso se chama cor-rup-ção!

--- Eu...

--- Não tem mais eu, não tem menos eu. Gente de baixa extração a gente conhece de longe. Por que não vai tomar um cafezinho naquele seu emprego? O senhor não entende?

--- Sabe da minha vida?

--- Todo mundo sabe que ninguém sabe. Essa é boa. Albergue, albergue! Dá o fora, malandro, dá o fora. Dou-lhe dez segundos. Dez, nove, oito...

--- Está bem, adeus.

--- Não esqueça sua carteira, ela caiu no chão. Por que não procura o serviço social? Sabe, na sua idade...Ei, precisa de uma grana pro bom prato?

--- Obrigado.

--- Que que é, não acha o bom prato bom, é? Mimado, mimado. Tem que suar. Trabalhei minha vida toda e...

Precisa-se de advogados.

Precisa-se de pessoas para trabalhar na lavoura do Suriname.

Precisa-se de babás, empregados domésticos e palhaços.

Precisa-se de figurantes com mais de 150 quilos.

Precisa-se de contadores com experiência minima de vinte anos.

Guilherme já estava exausto de procurar, mas não desistiu. Sabia que as pessoas que procuravam, encontravam. Bastava ter mais humildade e largar o cigarrinho. Bastava não ficar bravo quando as pessoas lhe diziam: a vaga já foi preenchida. Bastava talvez não andar com malas e sapatos de couro: olhe, ele usa aquela mala de executivo; é de couro, deve ser caríssima; é por isso que ele não vai pra frente! As pessoas bem-sucedidas, essas ele devia achar que invejava. Voltou a escrever poesia. Mas se esquecera do que era poesia. "O poema é uma semente, voa nos dedos do vento..." Sentou-se na cadeira, cadeira que não veria mais daqui a algumas semanas e escreveu:

No sol há manchas como na minha vida,
Porém as minhas se vêem a olho nú,
Então me escondo,
Nos subterrâneos, pelos corredores dos subviários,
Com ratos guinchando, trens freando...
Me escondo no esgoto, vou de barquinho
Talvez rumo ao mar, talvez a represas.
Mas o fato é que me encontro na Grécia,
Sob e sobre azuis tão lindos.
Não, deslizo em um tabogã e sou criança,
Sou gota de chuva que faz o vidro da tua janela chorar,
Gato feliz e gato Félix,
Frankstein.
Controlo a mão demoníaca.
Vejo a Terra da Lua,
O Sol do fundo do mar,
Ouço as vozes do céu no purgatório,
A maresia nas conchas,
E ainda não sei se riso ou choro ou nada no ataúde.