A SAGA DE EDUARDO, UM BRASILEIRO
Antonio Carlos Vellasques
 
 

Muito se falará das Olimpíadas de Pequim. Os analistas gastarão certamente meses digerindo as razões do sucesso ou fracasso de diversos atletas, seus feitos, a luta interior de cada um visando a superar frações de segundo, ou quem sabe tentando vencer um ou dois centímetros. No fundo, a luta é sempre do atleta contra si próprio, é o ser humano tendo de se superar. Eduardo é um brasileiro. Eduardo Santos. Negro, pobre e teimoso, muito teimoso.

Desde pequeno Eduardo sonhava ser um lutador, e como todo menino esse sonho o perseguia enquanto dormia. Judô é um esporte pouco popular no Brasil, e certamente os pais de Eduardo penaram bastante para colocá-lo na escolinha aonde ele viria a dar os primeiros golpes. O menino logo revelou talento para a coisa, passando a disputar e vencer campeonatos. Ponto. A história do menino deveria parar por aqui, pois após conquistar a faixa marrom, Eduardo deu-se conta de que jamais conseguiria obter a sonhada faixa preta. Porém continuava teimoso, muito teimoso.

Para passar para a faixa preta o rapaz precisaria pagar uma taxa, cujo montante jamais conseguiria obter. Eduardo passou então a encarar a realidade de um menino pobre: começou a disputar e vencer campeonatos entre faixas pretas utilizando sua surrada faixa marrom. Isso poderia prosperar por alguns meses, quem sabe um ano. Ele imaginava poder juntar o suficiente para pagar a taxa.

Eduardo viu o tempo passar. Um ano, dois anos, três anos e nada de conseguir o dinheiro para a mudança de faixa; quatro anos, cinco anos, seis anos disputando e vencendo torneios contra faixas pretas, usando ainda a velha faixa marrom.

Eduardo jamais imaginara que iria lutar dez longos anos com a surrada faixa marrom. Vezes sem conta o menino deve ter pensado em desistir do sonho; quantas noites chorando pelos cantos a desditosa sina. Tantas vezes seus pais animando-o a prosseguir na luta pelo sonho.

Em 2005, ao voltar de uma competição em Atenas, o judoca Carlos Honorato encontrou seu grande amigo Eduardo cabisbaixo e desanimado. Ambos treinavam em São Caetano do Sul:

- Algum problema, Eduardo - disse ele ao amigo.

- É o fim, Carlão. Estou contundido. Acabou. O doutor avisou que eu preciso operar o pé.

- Pois vamos tratar disso, Eduardo.

- Caia na real, Carlos. Eu não tenho onde cair morto, ainda estou com a faixa marrom por não ter grana para pagar a taxa. Acabou, cara.

- Eu vou dar um jeito, meu amigo. Vamos lá, anime-se.

Carlos Honorato deu de presente ao amigo o agasalho olímpico que havia usado no mundial de Atenas. Eduardo apressou-se em fazer correr uma rifa da roupa, e com o dinheiro alcançado pôde fazer a cirurgia. Alguns meses depois o jovem já estava de volta aos treinamentos. Era um teimoso.

O desempenho de Eduardo colocou a federação brasileira numa sinuca. Não daria mais para manter o rapaz disputando provas com a faixa errada. Eduardo era um teimoso, e em quatro classificatórias disputadas no Brasil e no exterior mostrou-se à altura de integrar o time de judô que iria a Pequim. A federação, sensível a isso, decidiu abrir mão dos 1500 reais da taxa de mudança de faixa e outorgou-a a Eduardo. Uma saída honrosa.

O Brasil tem um ministro dos Esportes. O Brasil também tem dezenas de secretários estaduais de Esportes, assim como centenas de secretários municipais de Esportes. O Brasil tem zilhões de reais para alimentar uma máquina de milhares de funcionários públicos ligados ao Esporte, gente que trabalhou incansavelmente para dar ao Brasil a posição de destaque que temos hoje em Pequim, com tamanha avalanche de medalhas; por ironia, o Brasil não tem míseros quinhentos reais para dar de ajuda ao Eduardo.

Porém, contrariando toda essa gente, Eduardo seguiu sendo um cara muito teimoso.

Eduardo Santos é o herói da Olimpíada. Um homem que chorou ao ser derrotado pelo suíço Serguei Aschwanden, e que na frente das câmeras, sem conseguir segurar as lágrimas, mostrou-se envergonhado por não ter conseguido obter a sonhada medalha. Eduardo confessou um medo infantil: não sabia como iria encarar seu querido pai, na volta ao Brasil, e ter de lhe dizer que fracassara. Por sua cabeça com certeza estavam passando as lembranças das agruras enormes, as decepções, tudo que ele passara para chegar tão perto do sonho para vê-lo fugir por entre os dedos. O Brasil chorou junto com ele.

Vezes sem conta um outro Eduardo, muito teimoso, pegava sua bicicleta e pedalava alguns quilômetros pelas ruas esburacadas de Joinville para ir treinar no Sesi. Eduardo era teimoso, muito teimoso. Eduardo treinava salto triplo, uma modalidade que exige aplicação e determinação de ferro, onde são necessários meses de treinamento para se avançar uns míseros centímetros.

A cidade de Joinville é conhecida pelo eterno clima ruim. Debaixo de qualquer tempo, ensopado pelas chuvas ou ardendo sob um sol escaldante, Eduardo estava sempre treinando. Um teimoso.

Algumas medalhas começaram a aparecer no peito do guri, animando-o a treinar ainda mais. E lá se via, na pista mambembe e decrépita, a figura solitária do menino a medir passos e ensaiar a corrida louca seguida de três passos longos que terminavam num sonoro tombo na areia dura e empedrada. Eduardo seguia sonhando e teimando. Muitas vezes isso ocorria à noite, sob a luz de uma luminária solitária e cúmplice, a figura solitária do menino medindo passos e correndo para se estatelar na areia seca e dura. Coisa de um sujeito teimoso.

A realidade, entretanto, colocaria um fim na carreira de Eduardo. A luta para obter alguns míseros centímetros a mais era algo insano, passando pela compra de todo e qualquer tipo de tênis que aparecesse pela praça, coisa que estava levando o pai de Eduardo à beira da bancarrota. Eduardo seguia teimando, apesar de tudo. As medalhas, que antes vinham à mancheia, começaram a rarear: o menino crescera, porém seus adversários também, e estavam mais fortes e capazes.

De nada valiam as súplicas do rapazola para que seu pai evitasse berrar seu nome a cada competição que Eduardo disputava. O velho homem, talvez não tão velho assim, era uma figura sempre presente nas arquibancadas, berrando a plenos pulmões solitariamente o nome do filho. O pai de Eduardo também era um teimoso. Porém isso não bastava mais, pois os adversários de Eduardo teimavam em obter melhores marcas. Eles eram também teimosos.

Um dia, depois de meditar sobre as dificuldades e seus próprios limites, Eduardo decidiu parar de teimar. Jogou a toalha, simplesmente. Atirou a um canto os tênis e o calção ainda sujos de areia e parou.

Pouco tempo depois a família de Eduardo mudou da cidade.

Não foi fácil para mim, numa de minhas últimas visitas a Joinville, estacionar discretamente o carro sob a luz de um poste ordinário, bem em frente ao vulto escuro da pista de atletismo, e descer para contemplar a velha pista. O local estava abandonado, e as lembranças de um tempo de pura esperança misturaram-se em minha cabeça como num caleidoscópio. Podia ver perfeitamente no escuro a figura de meu filho, solitário, marcando os passos e balançando-se para frente e para trás na cabeceira da pista, ensaiando a corrida até a marca de cal na caixa de areia. Foi naquela pista esburacada que meu filho Eduardo sonhou vezes sem conta, onde teimou e persistiu até o seu limite máximo. A pista ainda está lá, vai servir de motivo para os sonhos de novos Eduardos.