FESTA DE FAMÍLIA
Olga de Moura Mello
 
 

Durante 66 anos Tia Truda comemorou seu aniversário servindo bobó de camarão. A sobremesa variava entre mousse de chocolate, bolo de chocolate e pêssegos em calda com abacaxi. De todo o cardápio, eu só comia abacaxi. Quando criança me safava do bobó porque Vovó Nininha rugia que criança não comia camarão, então sempre havia um empadão de galinha que boa parte dos convivas olhava com inveja. Tio Dezito sempre fazia uma piada imbecil sobre crianças e pintinhos, enquanto Mamãe defendia meu direito a um prato menos calórico, pesado e prejudicial à saúde, o que deu ensejo para o irmão apelidá-la de Galinha d'Angola, devido à preferência que ela manifestava por roupas de pois.

(Depois de um certo tempo e dos olhares carrancudos de Papai, Tio Dezito optou por Angolana, que combinava mais com o aspecto físico de Mamãe, que passou a vida inteira sendo tomada por portuguesa; quando esclarecia que era paulista, o interlocutor, vexado, afirmava "Mas há muita portuguesa bonita por aí". Ou seja, confundir alguém com português poderia ofender o confundido, mas deixava confuso o que provocava a confusão).

Em criança, eu até gostava das festas, em adolescente, participava por cumprimento do dever, em adulta brincava com meus pais sobre assuntos secretos, rindo do ridículo grupo espremido em volta do ar condicionado, porque sempre fazia calor no aniversário de Tia Truda, mesmo na época em que havia inverno no Rio de Janeiro.

Depois da morte de Mamãe, com a briga pelo álbum de retratos da família, fui mantida em rigorosa distância e até lamentei não receber mais convocações para o aniversário, embora tivesse o cuidado de telefonar, enviar cartões ou fazer uma visita às pressas, alegando compromissos inadiáveis, deixando-lhe presentes ou braçadas de flores sempre recebidas com silvos que serviam para exprimir sua surpresa extasiada com a lembrança da sobrinha renegada. Cumprido minha pena de afastamento de cinco anos, novamente entronizada no seio familiar, fui intimada a retomar o convívio nada cordial com o amável grupo que destratava meus filhos e revolvia lembranças dolorosas com o mesmo apetite que atacavam as iguarias à mesa.
- Você não gosta de bobó de camarão, não é, Nininha?
- Não, mas não se preocupe comigo, Tia Truda, eu vou para dar um abraço na senhora, não para comer....
- Este ano vou inovar! É cozido! Cozido todo mundo come. Você come cozido, não é?

E cadê a coragem para informar que eu detestava cozido tanto quanto bobó de camarão? Minha família não se globalizara gastronomicamente. A comida servida era sempre a do tempo de Vovó Antonina, alimentação de um Brasil pré-geladeira. Sim, eram pratos tradicionais, porém, com exceção de uma época em que strogonoff virou moda, não havia concessão à modernidade na mesa.

- Eu não vou. Não como cozido. Pode dizer que tenho uma festa - anunciou Téo.
Maia foi lacônica: "Viajo amanhã para Angra", poupando-me do constrangimento de chegar ao apartamento de Tia Truda acompanhada por uma adolescente com o cabelo pintado de roxo.

Eu não tinha desculpa para me safar da acareação com Tio Dezito e meus primos, todos com filhos mais velhos do que eu, que jamais compareciam aos aniversários de Tia Truda, pois haviam se mudado para Brasília. Eu desconfiava que a mudança era exatamente porque todos odiavam bobó de camarão. Ou cozido.

- O que eu vou fazer? Eu preciso escapar dessa chatice. Eles vão cair em cima de mim e eu só como milho do cozido. Não dá nem para me refugiar em outro quarto. Não tem outro quarto - reclamei com Téo o Maia.

- Escreve uma lista de imprevistos que podem acontecer, corta em pedacinhos, e tira um na sorte - aconselhou Maia.

- Foi assim que você decidiu a cor de seu cabelo?

- Foi. Quando estou em dúvida, tiro na sorte. Sempre dá certo. Eu fiquei entre roxo, azul, rosa e verde.

- Eu não sei o que pode ser classificado como imprevisto. Imprevisto é desculpa que se dá para dentista.

- Dor de dente, gripe, ressaca - sugeriu Téo.

- Gente, eu não posso inventar uma desculpa dessas. Nem fica bem a gente mentir. Mentira tem perna curta

- Pede para trabalhar no plantão de outra pessoa.

- Tá muito em cima, não dá tempo de trocar.

- Vai à praia e diz que está toda queimada de sol.

- Se chover não dá, preciso de um plano B. E eu não queria mentir...

- Corta a mão com uma faca de cozinha. Corta pouquinho, sangra e se convence de que está sangrando muito. Aí não é mentira.

O estoque de idéias ruins não aumentava. O dia da provação se aproximava. Eu rezava por um imprevisto, mesmo sem ter qualquer fé.

Acabei fortalecendo minha fama de sem consideração quando caí de cama, realmente com febre no dia da festa. Téo e Maia salvaram a honra da família, surgindo depois do almoço só para levar três imensos buquês de flores.

No dia seguinte, ao telefone, Tia Truda exaltou a delicadeza dos meninos: "Pena que eles não comeram nada, Nininha. Só provaram a mousse de chocolate. Estavam numa correria, precisavam voltar para o ensaio da tal peça do colégio. A Maia, coitadinha, veio correndo, teve que sair na rua com aquela tinta no cabelo".

O aniversário de Tia Truda de 86 anos marco o início da maturidade social de meus filhos.