SEGURO DE VIDA
Tatiana Alves
 
 

"Seguro morreu de velho", diziam os avós, quando queriam recomendar prudência. O tal juízo, ou bom-senso, ou siso, não fazia mal a ninguém. Isso, aliado a uma boa canja, nunca era demais. E assim as gerações se sucediam, fortalecidas à base de bons caldos de galinha e prudentes e sensatos conselhos fornecidos de bandeja pelos sábios de frontes encanecidas. E assim, aparentemente protegida das adversidades e dos impasses, a humanidade escondia-se atrás de uma suposta razão que a orientaria em suas escolhas. E foi numa família assim, guiada por relógios, imagens de santos e rotina preestabelecida, que ele nasceu, impossibilitado de exercer sua insegurança em um mundo que já lhe parecia pronto, de tempos marcados e constantemente lembrados, nos quais seu único papel consistia em arrancar a folha do calendário, diariamente, num ritual que lhe acentuava a sensação de brevidade. As semanas passavam, com o cardápio semanal fixo a pautar cada dia, numa gastronômica rotina que dispensava agendas.

"Não vá lá, não é seguro"; "Filho meu não chora"... Com tais advertências e máximas ele cresceu, substituindo eventuais fracassos e frustrações pela falsa onipotência que toma conta de quem só caminha por estradas já conhecidas. Ou o amargo reconhecimento diante de mares sem perigos ou desafios, já tantas vezes visitados.

O tempo passava e o menino crescia, cada vez mais precavido. Em dia de prova no colégio, levava três canetas, idênticas, que alinhava com precisão junto à mesa, para o caso de alguma falhar ou mesmo acabar durante a realização do exame. Mesmo nos dias mais quentes, era visto portando seu indefectível casaquinho, além do guarda-chuva, permanentemente alojado no fundo da mochila. O juízo e o agasalho, pensava ele, seriam capazes de protegê-lo de qualquer infortúnio, e as fotos dos antepassados no corredor da casa completavam a aura de estabilidade e de segurança. Seus semblantes, severos, faziam-no crer que tudo na vida sempre havia sido igual, desde tempos imemoriais, do berço à tumba, e não seria ele a desafiar certezas tão inabaláveis.

E foi assim, evitando golpes de ar e paixões perigosas, que atravessou a adolescência. Do menino inseguro ao homem austero e reprimido, foi um pulo. Quer dizer, uma transição tranqüila e sem arroubos, pois pular nunca fizera parte de suas atividades. Seria insensato demais.

"Acho muito arriscado"; "Mais vale um pássaro na mão do que dois voando"; "Quem tudo quer tudo perde"... Ouvira tantas vezes frases como essas que realmente acreditara que o risco jamais valeria a pena. Sentia-se o mais seguro dos homens em sua existência pacata, de comida insossa a eletrocardiogramas mensais. Conhecia sua pressão arterial e os índices de glicose e colesterol melhor do que o caminho da própria casa. Não que ousasse traçar caminhos diferentes, nada disso. Mas, justamente pelo fato de jamais fugir à sua predeterminada rotina, ia para casa como um autômato, sem prestar atenção, pois aquele caminho já se confundia com sua vida, e não precisava se ater às ruas ou à paisagem para chegar ao seu destino. Pensava nas atribulações do dia seguinte, nunca nas flores que cresciam junto ao muro. À semelhança de um trenzinho de brinquedo, preso aos trilhos, seguia atrelado aos fios invisíveis que desde e para sempre o prendiam aos mesmos caminhos, pratos, hábitos e pensamentos. Jamais descarrilara.

...

Um dia, mudou. Resgatou todas as aplicações que possuía - de baixo risco, evidentemente - e decidiu apostar nos cavalos. Vira-se tomado por uma euforia quase orgástica ao ver seu dinheirinho oscilar - para então ganhar asas, voar e sumir - ao ritmo daquelas patas e ao sabor da insensatez. Em seguida, visitou as mais decadentes zonas de meretrício da cidade, distribuindo suas economias entre as trabalhadoras do local, que, em troca do mimo, nem exigiram preservativo. Descobriu taras que sequer imaginara, e pôs em prática suas mais calientes fantasias. Tanta aventura deu fome, e o mais novo bon vivant da Lapa entrou num desses pés-sujos e se fartou da comida mais engordurada e temperada que encontrou. Isso sem contar a pequena fortuna que gastou nos camelôs da cidade, comprando desde bijouterias de gosto duvidoso a relógios dos mais variados modelos, para distribuir em seguida aos novos conhecidos. Sentia-se um rei, em meio às relíquias adquiridas e que presenteava com magnanimidade.

E foi assim que no dia seguinte, infartado no CTI e com as apólices de seguro todas rasgadas, à exceção de uma, que beneficiava uma tal de Marilyn, conhecido travesti, que a família o encontrou. Junto aos papéis rasgados, um livro de Neruda que anos depois ainda seria lembrado no folclore familiar como o grande vilão da insensatez episódica do velho: Confesso que vivi.