Tema 180 - VESTÍGIOS
BIOGRAFIA
BOCA IMUNDA
Eduardo Prearo

Não se lembra muito bem o que escreveu no diário (um levíssimo mal-estar), mas mudou de noite, tornou-se outro ser, apesar das angústias persistirem, como o sonho de um dia ser importante. Plínia convidou-lhe para uma festa, mas...não ele não quis ir desta vez (está de certa forma dando continuidade ao diário?). Repouso, é o que precisa agora, ou então carinho, carinho repentino; alguém batendo à sua porta e o confortando, alguém desconhecido, um anjo disfarçado lhe chamando pelo nome: W.!W.!W.! A maior parte dos problemas foram inventados; o de viver contido na paranóia é um deles. Talvez lhe falte organismo para dar conta de tudo, coisa que, ao que lhe parece, era abundante no homem que viveu na casa antes dele. O homem bebia muito chá, cria em chá, em ervas, enfim. W. aprendeu a gostar de chá de morango com Plínia; fala na maior parte das vezes com mulheres, com homens quase nunca, mas é por culpa dele mesmo. Esqueceu-se de comprar sabonete. Mimado! As coisas vão ficar um pouco mais complicadas nesta sexta (por que assume responsabilidades e as esqueçe, por que o tempo passa tão rápido?). Seria preciso ser alegre, mas se o mundo o deprime desta forma, já imaginou ele aos outros? Verbaliza mal, e aquele sentimento de liberdade feliz partiu rumo a algum lugar secreto. Se se sente destratado e mal com pessoas do bem, ignorantíssimo, sentir-se-ia como com pessoas do mal? (Mas certamente que pessoas do mal inexistem). Têm nojo da boca dele, é o que sente; entao, infantilmente, resolveu deixar os dentes apodrecerem. Não, não quis ir à festa, cigar e wine, porque agora alguma coisa pesa. De um ano para cá houve mudanças. O entusiasmo já era, e se ele não tomar banho neste momento, vai ficar se coçando na cama. Talvez esteja vivendo no passado e não saiba. A impressiva antipatia dos paulistanos para com ele é esquecível, ele sabe, mas talvez haja perdão da parte deles. Está velho para quase tudo, e os brancos vigiam-no. Resolve ir até o supermercado; sabe, contemplar as panelas, imaginá-las sobre o fogão de onde mora e não comprá-las, é meio recorrente. Talvez Plínia ligue, mas será do fundo de um abismo, de um tempo remoto; ou uma voz do outro lado falando coisas como se estivesse tudo bem. Desconfiam dele. Mas afinal, é marginal ou não? Se se preocupam tanto com a saúde da nação, da humanidade, por que aqui os planos de saúde são tão caros para idosos? Talvez porque as pessoas que suaram muito e que têm o seu salário digno não admitam que velhos como elas, velhos pobres, que não lutaram tanto, tenham um. Deve estar soberbo, pelo visto. Não, tenta escrever, tenta e tenta, mas não é escritor, nunca será. Ser um escritor-atleta é um sonho, apenas um sonho. Os efeitos das causas parecem se concentrar nos destratos dessas mulheres consideradas sábias, cheias de amigos. Mas no final, elas é que verbalizam que são destratadas, e por ele. Sim, teve amizades até o mês passado, dessas glamurosas (o glamour gostava dele até então, solicitou a presença dele naquela grande festa promovida pela elite-mor); Plínia, inclusive, é uma ex-amizade, não tem certeza. Lembra-se de que quando saía com alguma das amizades tinha que parar em cada esquina, e enquanto o conhecido delas e elas conversavam, ficava parado num canto, esperando, esperando a conversa terminar. Elas tinham um conhecido em cada esquina, e nessa metrópole imensa! Se Clarisse lêsse o que ele escreve, discordaria de tudo, mormente da ortografia, das concordâncias. Ela é uma mestra em contrariá-lo. Mas Clarisse não irá ler o que ele escreve, ela não acessa internet, só lê escritos impressos em livros. Está errado, e deve haver alguma coisa boa em ser o errado, o nojo, a pessoa não confiável, oportunista, ladra, que tem uma boca imunda (o senhor não escova os dentes!), e que se não fosse assim, fosse assado, talvez merecesse apoio, talvez merecesse ter dinheiro. Deus-Pai, o que andou fazendo em vidas anteriores para ser pobre? Mas não aceita bem ter tido vidas anteriores: o corpo e o espírito talvez virem pó. Troca-se, mas não irá mais ao supermercado. Está lá embaixo, mas mais lá embaixo possível. Toma um desses remédios que todo mundo que tem dificuldade para dormir toma. Toma um comprimido inteiro. Talvez daqui a pouco melhore, talvez, afinal das contas, não lhe tenham feito mal algum; e foi o que realmente aconteceu. E se o fizeram é porque neste país retaliação é algo moderno, necessário. Clarisse lhe disse que tem um novo protegido, que tem necessidade de ser mãe. W. pensa em se mandar, em fugir, em morrer; certamente que deixará para uns poucos vestígios de que tenha vivido no planeta Terra, pois pertence ao reino dos mortos-vivos, e o que possue de bens materiais se resume em celulares e roupas de brechó; nenhuma jóia, nenhum apartamento, nenhuma terra, talvez um seguro de vida. Os humildes parece exigirem humildade, sempre. É equinócio, a primavera chega arrebatadora, trazendo uma nova brisa aquariana. As flores estão mesmo lindas, as rosas. Nadar num mar de rosas mesmo com todos aqueles espinhos, pensa nisso. No passado, da Serra Velha divisava o mar e uma vozinha, aquela dos esquizofrênicos, prometia-lhe um mar de rosas. E naquela idade, não imaginava que poderia ser um engravatado; queria era se aventurar. Difícil controlar esses éteres luminosos antes dos vinte e oito. Um engravatado, um ser que deu certo em São Paulo, era tudo o que quis ser, mas perdeu-se por meandros hippies, e assecla, vivia o sonho americano, não a realidade brasileira. Volta sempre à juventude...

"Corro muito. Cem por hora, mais ou menos, mas tem gente que corre mais. Ah, talvez neste final de semana eu vá para Bertioga."

"Ah, corre com o carro; pensei que era corredor, que não era sedentário. Você vai para Bertioga sozinho?"

"Sim, porque no futuro não haverá mais aquele hotel onde costumo ficar. Quase, quase hein!, quase comprei um caiaque para levar no bagageiro até a praia e passear pelo alto-mar. Fico no hotel sozinho. De manhã acordo, tomo o café da manhã, vou à praia. Assim é minha juventude. Você é de onde mesmo?"

"Nem queira saber. Mas em vez de ficar fazendo essas viagens, porque não guarda o dinheiro? Vai descendo a serra, ouvindo canções, cantando. Você se acha bom como cantor, hein! Não se enturma mesmo; após os quarenta isso pode pesar."

"Quarenta? Está tão longe. E dizem que o mundo vai acabar no ano 2000. Terei trinta e cinco anos, trinta e cinco. Nossa, que velho! Trinta e cinco anos no ano dois mil. Quero mais é viver minha vida agora, não pensar no futuro. Mas, você tem algum problema?"

"Eu sou virgem."

"Virgem?, com dezenove anos? Talvez eu nem chegue aos quarenta, sabe. Talvez no futuro eu descubra que ser virgem as vinte, trinta ou quarenta não é pecado, mas virtude. Mas ser virgem aos dezenove é mesmo chocante. Chegamos. Bom, foi um prazer conhecê-lo. Vejo você amanhã."

A juventude perdida. O que seria juventude perdida?, uma juventude sem troca de fluídos, sem alegrias, uma juventude abrasada. W. preferiu os amores platônicos. Perdeu a virgindade aos trinta. E não enrubescer mais foi uma conquista maior do que ter um carro, uma casa, qualquer coisa assim. Não, não terminou a faculdade porque enrubescia e algumas mulheres gritavam quando isso acontecia. O enrubescimento incontrolável era o seu maior problema. E havia piadas na época, piadas de bichinhas que enrubesciam em igrejas. Um homem, um ser hétero, jamais enrubescia. Nesse período, W. chegou a ler em uma matéria no jornal que havia uma operação em Londres capaz de fazer com que pessoas que enrubesciam se curassem. Vermelhar, vermelhar, vermelhar. O rubro e o velho comunista, a velha canção. Mas a canção que mais fazia sucesso na época era Yolanda. Os karaokês já existiam, todo mundo já soltava a voz, já pensava em ir cantar em um programa televisivo. Querer ser artista era burrice, continua sendo. O rubro não era culpa das parótidas. Pensa em um chá, em chá mate. Além de antioxidantes contém cafeína. Não desce mais a serra porque não tem carro e nem um emprego bom. A maior parte daquela geração tornou-se jornalista ou engenheira, mas, pelo que constatou outro dia, apenas duas pessoas se destacaram. Há mais, sem dúvida, há mais. Todos eram tão inteligentes! Seguiram outros caminhos. Não, W. não tem saudades daquela época. Talvez das estrelas, mas elas continuam onde estão. Talvez não ter saudades seja falta de lucidez, não sabe. Se visse alguém daquela época não sentiria nada, esconder-se-ia e só. Que pouca vergonha! O senhor era W?, ah sim, lembro-me vagamente. Que saudades! O senhor era tão extrovertido que nem assistia às aulas, ficava rindo pelos corredores, aprontando. E era bonitinho. Ou, o senhor era W.? O senhor era tão tímido, não tinha futuro. Ninguém falou que pena quando o senhor desistiu. Ou, o senhor era W.? Não me lembro. Olha, desculpa mas não me lembro mesmo. Ou, o senhor era W.?, aquele que se achava parecido com Omar Sharif dos Girassóis da Rússia? Parou com o permanente?

Voltar a estudar talvez não seja implausível. Mas e agora, como faria? Nos anos 90, desapareceu. W., desaparecido. Ele foi dançar Vogue no litoral. Filho de Oxossi, viu pela primeira vez um disco voador. Se se visse agora, naquela época, de fora, achar-se-ia ridículo, teria mais vergonha de si mesmo do que agora? Saudades, não terá saudades de nada disso nunca. Sua vida?, sempre incoerente.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor