Tema 180 - VESTÍGIOS
BIOGRAFIA
TERÇO
Tereza Pires

corptexto: No vôo iniciado, milhões de fios destecendo poeira na luz, amarelos, buscam qualquer azul ou verde de mar aberto. Ondas das asas fazendo história nos gestos esquecidos. Cientistas não sabem acenos ou bilhetes. Este homem sabe ir comigo até praias, dunas, desertos e cidades. Um ponto longe, longe que se chega depois de oito milhões de buritis. Ele vai comigo, atravessa ventos e chuvas, apenas para existir diferente dos que não resistem ao fascínio da terra. Depois, exaustos das ondas arrebentando asas na pele, costas, dormimos inocentes, onde o corpo acolhe gente de bem. Quando sentamos à beira das linhas, os pés imersos, observamos o fascínio grudado nas árvores, não falamos da fome e nem nos alimentamos de raiz, devoramos as máscaras que entalhamos. E quando o ponto longe já é perto, ele volta comigo, atravessa desertos, tempestades de terra e sal.
No vôo retornado, milhões de fios destramam a gente. Este homem vive no que há de mais amar em mim.

Às vezes rumo sem ele para o longe, apenas para vê-la escondida na ponta da alma, onde risca órbitas de borboletas. Sento á beira das linhas para cuidar em segredo. Enquanto espero, balanço os pés e propago ondas no branco. Quando ela surge do meio das espumas é festa em mim. O vestido estampado que teceu com os fios de Ariadne que recolhi a todo transe, postados fio a fio cada dia que a deixei, anteface vestida indiferente e publicado lá, minguando, roto de vento salgado, quase nuvem, exigia palavra na garganta, desassossegando meu silêncio. Quem essa mulher que me atravessa? Ela arrasta distraída o arco e as flechas envenenadas que recebeu do deus sonso e dobrado.

Ferida nos flancos e nas coxas, ela nega paixão, há em sua fronte uma coroa de heras. Na ponta da alma onde exila, as chagas exalam dor. As borboletas são fingimento, o cheiro que desprende de cada ferida aberta, apenas sublimidades podem suportar.

Um tempo, esperei até que seu corpo cansasse e seus olhos desistissem no silêncio denso, fui até a ilha e toquei as chagas que nunca fecham, achava que podia cauterizar a carne morta que ela caligrafa na existência, só porque pensa que sem o cheiro da dor já não sabe respirar. Ela repugnou minhas mãos. O deus sonso a prevenira e gravou o selo nas setas com veneno.
Quando tenho medo, ando com os pés descalços e desarmo as ciladas para que ela não tenha certeza do costado atravessado, no dia que mirou do escuro no alvoroço de mim.
Quase pude tocá-la no instante que me adivinhava observando a espuma. Quis atravessar a paixão negada, roubar o desejo do corpo e morar naquela doçura de perguntar, arrancar o cerne na resina do osso, roer a violência dura das paixões até o limite do insuportável, onde toda palavra sussurra quase nada, de querer dizer tão e tão perto e não conseguir palavralma. Depois, acolhê-la em meu colo, quando o amor viesse tranqüilo na inocência dos dias.

Dia vem, respiro a vertigem nas trilhas verdes azuis e com as cores que sobram, arrasto poeira às brasas, para que ela não esqueça de tecer enquanto anda distraída e arrasta arco, flecha e ausência.


Quando ela permitiu, assentei-me na terra, espalhei pó sobre a cabeça e cobri a face. Nada pronunciei durante três tempos. E este era o meu gesto de lamentação, e não chorar era mostrar força para acompanhá-la enquanto a dor era muita. Disse a Deus que ela era Seu sopro de vida e que eu era do mesmo barro com o qual nos criou e pedi forte que a curasse. Depois adoeci dos olhos. Rumei do longe sem saber aonde pertencer.

Ainda a vigio sem que saiba. Alimento círculos de fogo para que a noite morra acesa. No longe, até ela pode congelar no inverno. Depois, tomo conta para que os bichos e as lendas não construam casulos em seus olhos e nada digo aos seus sonhos. Adormeço.

Talvez Deus voltasse a pairar sobre as águas. Ressuscitadas, as aves do amor presas na garganta trouxessem vermelhos insuspeitados, como os que se tingem nas cidades do oriente, e, fortíssimo, o azul delicado de flutuar esgarçado, romperia o espaço sereno do mundo, onde meu farol acende para dentro o impronunciável em meus olhos.

Não fossem os olhos grandes e ingênuos do homem que habita no amor em mim, os fios destecendo amarelo na poeira do vento que nos chama, e a chuva intermitente das ondas arrebentando asas nas costas. Não fosse essa piedade imensa que sentimos da humanidade e que sentimos nos caules desbotados das flores e borboletas de giz colorido desenhando as estações, flutuando desencanto que já seca suas gargantas e o desespero de fome e de amor, desmanchava as linhas com as pontas dos dedos, distraía os olhos cansados. Não fossem os olhos deste homem que me espera, desmanchava o longe, apenas mais um gesto esquecido.
Enquanto os olhos dele me abismam, costuro as almas secas e as sopro pedindo a Deus que não seja pecado pretender respirá-las.

Adormeço, no sonho resolvo o viver. Agora, o mar é só o fundo na gente, a vida prolifera pequena de se alimentar de algas e de si mesmo, a escrita faz sede na fonte, a pedra das palavras brota terra seca da boca, arranca sangue pra alimento e seca inútil, encolho desejo de qualquer vento, o ar flecha cores de mim e nada tenho a oferecer para que o arco-de-deus seja.

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