Tema 181 - Farrapo Humano
BIOGRAFIA
A ÚLTIMA CEIA
Agliberto Cerqueira

Da última vez em que fui prisioneiro já podia tolerar uma série de atitudes violentas por parte dos torturadores mas não suportava mais a comida que o carcereiro largava na cela como seu eu fosse um animal. Eu ficava só, num cubículo, e já havia memorizado todos os sons e cheiros do presídio. Sabia quando vinha o carcereiro trazendo a lavagem: podia sentir o cheiro do caldo podre à distância e ouvia seus passos cada vez mais apressados porque o canalha tinha prazer em me trazer aqueles restos. Chegava rindo aquele seu riso idiota, balançando sua papada mole debaixo do queixo e deixava a cumbuca no chão, onde normalmente eu ficava estirado, com as costas apoiadas na parede.

Queriam-me vivo a todo custo e por muito tempo. Pretendiam alongar a minha vida e perpetuar meu sofrimento. Só que, para isso, era necessário que eu me alimentasse. Mas os alimentos que me forneciam eram restos de coisas desconhecidas e infectas, tinham um gosto horrível de podre e me faziam vomitar parte daquilo que, com muito esforço, eu conseguia engolir. E percebi que era exatamente essa a sua diversão e o seu prazer.

A partir daí, a minha luta de todos os dias, foi evitar a imundície que me serviam, com o único fim de antecipar a minha morte. Mas, nessas ocasiões, quando percebiam minhas artimanhas, vinham infalíveis os torturadores que sempre tinham algo diferente para o meu suplício. No começo foram as brasas dos cigarros apagadas em meu corpo e, para evitá-las, eu voltava a comer, temporariamente, só para satisfazê-los. Porém, infelizmente, com o tempo, as queimaduras deixaram de fato de me incomodar. Passaram a ser apenas dores momentâneas que no início se transformavam em berros, depois em feridas purulentas que coçavam sem que eu pudesse esfregar nelas minhas unhas, cicatrizavam e soltavam-se da pele como se fizessem parte da brasa e não do meu corpo.

Quando concluíram que as brasas não surtiam mais efeitos e que eu, novamente, havia interrompido a alimentação, começaram sem rodeios, a enfiar finas e pontiagudas lâminas de metal sob as unhas das minhas mãos. Depois de semanas, com as mãos inchadas e os dedos inflamados, não me restava outra alternativa a não ser voltar a comer a lavagem que cheirava ultimamente a chiqueiro de porcos. Metia as mãos imundas e doloridas dentro da cumbuca para pescar e comer qualquer coisa que me aliviasse a fome, mas sem nenhum excesso que pudesse comprometer o meu breve encontro com a morte.

Naquilo que restava de meu pensamento, porque exatamente não sabia mais o que fazia naquele local, nem sequer quem eu havia sido, nem o que queriam de mim finalmente, por vezes decidira comer às cegas tudo aquilo que me serviam. Mas isso, de certa forma, me tornaria cada vez mais são e cheio de vida, distanciando-me do meu propósito e deixando-lhes o tempo infinito para fazer do meu corpo e da minha mente o que quisessem. Todavia, ao escutar o carcereiro chegando, balofo, odioso, com seu papo mole, sorrindo bestamente com as dúvidas que conseguia imaginar em minha cabeça, a cumbuca engordurada entre as mãoes gordas, eu decidia manter-me firme em minha cruzada de enganá-los lentamente, morrendo aos poucos, sem que eles se dessem conta disso. Ainda que as torturas voltassem mais violentas. Ainda que me obrigassem a comer toda a podridão do mundo. Eu morreria.

Dessa forma fui enfraquecendo conscientemente, mais e mais a cada dia, acreditando piamente que minha morte chegaria em breve. Enquanto isso eles supunham que ganhavam tempo, apreciavam meu sofrimento e procuravam ouvir de mim aquilo que nunca quiseram saber, tantos anos se passaram desde que ali chegara e porque nunca tivera o que lhes contar. Outras vezes, intencionalmente, esqueciam de mim por dias, semanas e, nessas ocasiões, eu farejava o cheiro da comida estragada ao longe e, apesar de não desejá-la, a esperava com ansiedade. Num desses dias, em frangalhos, fazia um frio intenso e os trapos rotos e imundos que usava não me protegiam do vento gelado que inesperadamente soprou. Arrastei-me para um canto do cubículo onde se concentravam, em meio ao pó, os ninhos dos insetos e acomodei-me ali para fugir do frio e do vento. Imediantemente senti os percevejos caminhando minúsculos em meu corpo, aninhando-se entre meus pêlos e, logo em seguida, as coceiras insistentes quando começaram a chupar meu sangue. Aqueci-me.

Não sei quanto tempo fiquei nessa posição. Quando voltei a mim, subitamente, dois homens olhavam-me pelos vãos das grades. Passei as mãos magras sobre os cabelos e barbas longas e notei minha pele avermelhada pelas picadas dos insetos e infectada pela urina dos ratos que passaram a correr pela cela em busca dos restos espalhados no chão. Percebi um dente solto em minha boca. Retirei-o e o admirei como um estranho e o atirei num canto. Um jato de água gelada atingiu-me violentamente atirando-me em direção à parede. Um dos homens segurava uma mangueira enorme e o outro mirava o jato em minha direção fazendo com que eu batesse para lá e para cá, em todos os lados, como seu eu fosse um pedaço de bosta, um caco, o lixo a ser varrido para o ralo. Quando pararam um deles entrou, apanhou-me e colocou-me sobre o catre. Arrancaram os trapos que cobriam meu corpo. Cortaram meus cabelos e minha barba. Rasparam todos os meus pêlos. E jogaram sobre mim um pó esbranquiçado que queimava minha pele mais que todas as brasas dos cigarros de outrora. Repetiram a operação mais de uma vez e me abandoram novamente.

Apesar dos cuidados minha pele começou a descamar. Primeiro nas pernas. Depois os braços e o rosto. Bastava coçar para que a crosta se desprendesse feito folha. Os dentes que ainda restavam terminaram por cair rapidamente, um após o outro, bastava apenas puxá-los: as gengivas sequer sangravam. Não podia mais mastigar os nacos de carne velha que punham agora no caldo. Ficava horas chupando os pedaços até cuspí-los no chão. Meus ossos estavam mais à mostra sob a pele seca. Não via o meu rosto há anos mas o contato com as mãos permitiam-me tatear as faces encovadas, a boca murcha, os olhos ofuscados e acumulados da ramela diária. Nu há meses ou anos, arrastava-me pelo chão da cela com as baratas que, nesse tempo, acostumaram-se com a minha presença. Os ratos, agora mais ariscos, mordiscavam e lambiam os meus pés inchados de onde escorria, lentamente, um líquido amarelo e constante. E as rugas e talhos no corpo inteiro, o meu cérebro paralisado pelo tempo e pelo vazio, transformaram-me num velho fantasma desconhecido de mim mesmo. Havia finalmente esquecido de todas as coisas. Nada mais importava. Fosse quem tivesse sido eu nem sabia mais se fora eu mesmo que havia estado lá todos esses anos. Talvez fosse um rato. Quem sabe uma barata. Talvez eu mesmo.

E foi assim confuso, distante, que vi chegar, pela última vez, meu feliz carcereiro. Vinha sorrindo como sempre, desmedidamente. Por certo haviam chegado à conclusão que meu tempo findara e não mais importava minha alimentação e os seus cuidados; ou a reles continuidade de minha vida ou a brevidade de minha morte. Tiveram diversão e prazer durante décadas. Porém, o espetáculo terminava. Eu estava estirado, como sempre, com as costas apoiadas em uma das paredes. As pernas entreabertas. Esquálido. Moribundo. O carcereiro entrou, caminhou até mim com sua papada amanteigada e acocorou-se bem próximo, quase pisando meu escroto. Para minha surpresa, dessa vez, trazia um prato forrado com alimentos de verdade. Coisas das quais há muito esquecera. Até um garfo e uma faca para quem, até ontem, só se alimentava com as mãos. Pude admirar a quantidade imensa de comida limpa, fresca, fumegante, suculenta, que me ofereciam sabendo muito bem que eu não tinha mais forças nem vontade para comê-la. O carcereiro estava certo disso e sorria bonachão. O pescoço gordo gorgolejando no mesmo compasso do riso rouco.

Tremendo empunhei firmemente o garfo e a faca com cada uma das minhas mãos ossudas. Ele segurava o prato cheio bem em frente a minha cara. Então das produndezas do que restara de mim, daquele trapo em que me transformara, um lampejo de consciência brotou inesperadamente. Um desprezo desmedido por aquele sorriso falso e tudo o que representava. Pelo fato de terem me proporcionado vida enquanto eu desejara a morte. Um ódio profundo contra aqueles que me espancaram, que me mutilaram, que marcaram meu corpo com suas armas covardes. Uma vingança animal, violenta e instintiva. Inadiável.

Meus braços magros então dispararam feito flechas e minhas mãos certeiras enterraram o garfo e a faca naquele pescoço mole. A boca infeliz parrou de sorrir e escancarou-se. Os seus olhos estalaram de susto e fitaram-me surpresos por um tempo. Buscou ar e não encontrou. Ficou imóvel, aterrorizado. O prato soltou-se de suas mãos e caiu sobre as minhas pernas. Numa vã tentativa ergueu ainda as mãos e procurou puxar os meus braços. Mas a minha gana era muito maior do que a sua força. E eu enfiei ainda mais os talheres em sua garganta. Então, na certeza de sua morte, puxei-os num só golpe. O sangue esguichou brilhante, silencioso. E respingou em meu rosto, ensopou minhas mãos e encharcou o chão.

Saciado, aspirei o seu aroma intenso, até certo ponto enjoativo, e pude senti-lo nos meus beiços, nos contornos da língua, morno, viscoso e levemente adocicado.

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