Tema 181 - Farrapo Humano
BIOGRAFIA
DEIXA PRA LÁ
Sharon Ratis

Disse, no hospital onde ele deu entrada praticamente morto, que fora um acidente. Para quem não o conhece, podia mesmo ter sido. Mas eu e ele sabemos muito bem que não se mistura álcool a cinqüenta drágeas do que quer que seja. Conversamos sobre isso na semana passada. Ele me dizia com seu ar pueril:

- Não se preocupa. As pessoas que morrem de overdose, só morrem porque misturam álcool com outras substâncias. Veja Janis Joplin, por exemplo.

Eu não respondia, mas eu não queria saber de Janis Joplin alguma. Ela morreu quando nós dois tínhamos acabado de nascer, engatinhávamos, usávamos fraldas. Eu queria saber dele. E o que eu via era um homem da mais rara inteligência e sensibilidade se transformando num farrapo humano. Transformando-me num farrapo humano.

Nos últimos dias, ele andava pelo quarto, de um lado para o outro. Estava sempre tão aflito, tão agitado. Dizia que não suportava mais tantas dores. Que se ele usava alguma substância ilícita, era só para aliviar seu estômago. Lenços de papel amassados, espalhados por todos os lados. Tropeçava nas garrafas vazias. O cabelo louro em total desalinho, sujo, cobrindo seu rosto. Mas você prometeu que não ia beber!

- Champanhe não vale, é fraquinho. Quando falo de bebida, estou falando de destilado, estou falando desse uísque que você não larga.

É verdade, não largo. Outro dia estava olhando umas fotos nossas. Em todas elas apareço com um cigarro na boca e um copo de uísque na mão. Fotos antigas, de antes de ele começar a consumir... Deixa pra lá.

Ele gostava de escancarar as janelas. Todas. Gostava de sentir o vento frio cortar sua face, bater direto em seu peito nu, arrepiar sua pele. Estava com febre há três longos dias, mas dizia que não. Seu rosto em brasa o denunciava.

Sua magreza me dava agonia. Ele vestia várias blusas umas sobre as outras, só para dar a impressão de ser mais forte, mas ele era tão frágil, pai. Quando se contorcia de dores por causa do estômago, ele era a pessoa mais desamparada que já conheci. Ah, se eu pudesse passar aquela dor para minhas entranhas. Mas eu não podia. Só podia anestesiar a minha dor com uísque.

Quando aconteceu, eu não estava em casa. Ele planejara tudo muito bem, de forma tão clara que, se eu tivesse prestado um pouco mais de atenção, talvez pudesse ter evitado. Que soberba a minha! Ele deu todos os sinais clássicos.

Abriu o armário e pegou uma blusa, a de lã, azul-clara. Estava tão velhinha, mas era sua preferida. Deixou a porta aberta. Tomou alguns sedativos e logo deve ter se sentido sonolento. Pegou outro champanhe e se deitou no sofá. Nem tirou o jeans. Parecia um anjo, assim, todo vestido de azul. Nunca vi um anjo de verdade. Não, espera, é mentira, vi, sim. Ele, deitado no sofá, encolhido, seus olhos azuis, sua boca vermelha e sua palidez. Triste, porém angelical.

Nem dormindo tinha paz. Virava-se o tempo todo, angustiado. Levantou-se cambaleando de sono. Guardava um ar infantil quando esfregava os olhos na tentativa inútil de espantar o sono. Abriu a geladeira e voltou bebendo outra garrafa, no gargalo. Acendeu um cigarro, mas não terminou de fumá-lo.

Quando cheguei, ele estava azul, gelado. Como me culpei por não ter evitado, meu pai. Ele fez tudo na minha frente. Preparei uma dose de uísque e esperei o socorro apertando forte sua cabeça contra o meu peito.

Quando me deixaram entrar, vi seus olhos azuis fitando o vazio. Olhavam o teto branco, mas não viam nada. Sua boca entreaberta, tão bonita, a barba por fazer. Ele não queria voltar. Por que não respeitei sua vontade, meu pai ? Por que não o deixei em paz ? Sentei-me a seu lado e chamei pelo seu nome duas vezes. Passeia a mão por seus cabelos louros, tão finos quanto cabelo de neném - ainda cheiravam a xampu. Sobre a poltrona branca, perto da porta, estavam seu jeans e a blusa azul-clara, de lã. Estava nu debaixo do lençol. Peguei sua mão, estava tão fria! Tomei consciência de nossa fragilidade. Queria que ele apertasse meus dedos, qualquer sinal, pai, qualquer sinal! Sua imagem tão doce era como se estivesse flutuando, ele até parecia estar bem. Era isso que ele procurara por toda sua breve vida. Estava no clímax, em seu momento único, podia até me ouvir chamando, mas não queria voltar. Faz parte.

O silêncio só era quebrado pelo sutil ruído do monitor. Baixei um pouco o lençol e encostei a cabeça em seu peito de menino. Certificar-me de que seu coração ainda batia. Tanta tecnologia para nada. Ele estava escorregando cada vez para mais longe, para um mundo criado por sua mente, seu pequeno universo. As coisas vinham sendo difíceis, reconheço. Por que ouvi os outros e não o deixei ter o que aliviava suas dores ? Talvez, se eu tivesse apenas segurado sua mão e o levado para algum lugar muito, muito longe, isso não tivesse acontecido. Agora ele estava muito longe. Sozinho. Inalcançável.

O vento gélido o deixava arrepiado. Soltei sua mão e baixei o vidro da janela. A garoa era cortada pelos faróis dos carros. Estávamos tão altos, não ouvíamos qualquer barulho externo. Já não sabia há quanto tempo estávamos ali. Só o monitor apitando ritmicamente.

Podia desligar tudo, dar-lhe a paz que tanto procurara. Ninguém podia curar sua alma, ele já dera sinais sutis. Besteira. Cobri-o até o pescoço. Estava tão bonito. Seu rosto, apesar da palidez, estava sereno, seus olhos nunca estiveram tão brilhantes. Não me recordava de tê-lo visto antes assim, tão tranqüilo.

- Onde você está não existe dor, não é ? - sussurrei ao seu ouvido. Eu quase sentia inveja. Eu sentia inveja, jamais teria aquela paz violenta, agressiva. Fitei seus olhos, bem fundo, estavam ainda mais azuis, semi-serrados, vivos. Beijei sua boca, era quente. Estou aqui.

- Vem me buscar. Estou te esperando.

Ele gostava de ouvir histórias. Eu gostava de contá-las enquanto acariciava sua cabeça loura. Ele ficava deitado no meu colo, abraçado às minhas pernas nuas, tão desamparado. Eu sentia uma necessidade doentia de protegê-lo, como se, com isso, eu pudesse arrancá-lo das garras de seu destino. Do nosso destino.

Apertei sua mão com toda força. A chuva se tornava mais densa à medida que a madrugada avançava. Só o barulho do monitor. Um pontinho vermelho, uma linha verde oscilante e, de repente, o sinal. Caso se tornasse ininterrupto, não haveria mais histórias. Ele dizia a primeira frase, eu continuava. O senhor da situação.

Seu olhar me chamava para compartilhar seu momento sereníssimo. Ele gostaria de que eu visse, pudesse acompanhá-lo. Mas não havia nada que eu fosse capaz de ver. Não devia ser como aqui. Abri a janela para deixar a chuva entrar. Chuva fria de fim de inverno, do jeito que ele gostava. Fiquei olhando os pingos molharem seus cabelos, os lençóis, escorrerem. Então saí desvairada por não poder fazer nada.

Abri a porta e preparei uma dose de uísque. Dupla. Sem gelo. Estava tudo alagado. Na pressa de socorrê-lo, não fechei as janelas. A porta do armário ainda estava aberta. Apanhei a caixa de sedativos amassada, no chão. Tomei o necessário e me deitei encolhida, no sofá molhado que acolhera seu corpo como se fosse um útero. Acendi um cigarro e percebi, antes de entrar no nirvana, que ele não voltaria, que, no lugar de esperá-lo, eu devia ir encontrá-lo. Eu precisava estar lá quando ele chegasse. A lua entrava pela janela da sala com a chuva. Estendi o braço e peguei a garrafa de champanhe. Ele abriu os olhos.

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