Tema 182 - Primeiros anos
BIOGRAFIA
UMA JANELA ENTREABERTA
Luiza Aparecida Mendo

Ela voltou do enterro de Gustavo mais aprisionada que o marido. Ele sob sete palmos de terra molhada, pois que o mundo parecia querer chorar mais que os olhos da viúva; ela acorrentada às suas lembranças e sufocada pela tristeza. Os vizinhos a ampararam e empurraram porta adentro. Estava terminado o espetáculo e a vida continuava lá fora como em qualquer dia.

Leda cerrou as cortinas, apagou as luzes que julgava excessivas e quedou-se em sua poltrona de leitura, a um canto da sala. Deixou-se ficar como uma parte da mobília, cara e fora de moda, que entulhava a casa e que fazia parte de sua longa estória de amor.

Os primeiros dias foram de muitas visitas e poucas conversas. Os parentes bem que tentavam caminhar por outros assuntos, mas ela só pensava, falava e queria ouvir coisas de Gustavo. Fez-se rodear de fotografias do morto e contava às visitas tudo sobre este ou aquele retrato. Estava mais para biógrafa do finado que para viúva. Acabou só, antes que o mês findasse, pois tristeza e solidão são gêmeas fraternas.

Passou os dois primeiros anos de sua viuvez entre a poltrona e suas necessidades básicas, entulhada em sua fortaleza com tudo que julgava, de alguma forma, necessário. Era ela, a poltrona, as fotografias, os livros, as guloseimas e os remédios. Vez ou outra a empregada passava o espanador sobre a própria patroa, que se confundia com as coisas mortas daquele triste quadro.

Um dia, sem qualquer cerimônia, o gato da nova vizinha atravessou a janela, que a empregada desatenta havia deixado entreaberta e pulou no colo de Leda. Ficaram os dois de olhos arregalados, um se vendo no outro. Ela de cabelos desgrenhados, com as olheiras e as rugas brigando por espaço na cara macilenta e ele com sua altivez felina de orelhas pontiagudas e bigodes eriçados. Por um segundo o grito e o miado ficaram presos nas gargantas e foi justamente esse segundo que criou o laço entre os dois. Ela relaxou os músculos da face e ensaiou um sorriso quase esquecido e ele recolheu os bigodes ao natural. Tímida, ela alisou os pelos dourados do bichano e ele, sem qualquer pudor, se fez acarinhado por sua mão trêmula. Depois ele pulou para o tapete e rolou de um lado a outro da sala, como se estivesse perseguindo a própria sombra e ela rolou de rir das peripécias daquele gato maluco. Os músculos do riso doíam pelo tempo de desuso e o coração descompassava na emoção nova.

No dia seguinte, quando o gato voltou, as cortinas estavam abertas, a barricada na poltrona havia sido desfeita e Leda tomava sol junto à janela. Era como um encontro marcado. Ela trazia um laço de veludo no cabelo e um vestido florido, que folgava em seu corpo magro e ele trazia a mesma cara safada do primeiro encontro. Roçaram-se como velhos amigos e dormiram juntos de cara para o sol.

Os tristes primeiros anos findavam e uma nova etapa começava. Os passos ainda eram lentos e a saudade dolorida, mas Gustavo começava a morrer verdadeiramente na vida de Leda, enquanto ela retornava ao mundo dos vivos, sobressaltada pelas maluquices felinas de seu pequeno novo amigo.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor