Tema 182 - Primeiros anos
BIOGRAFIA
FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA...
Raimundo Lopes

Essa semana a saudade tomou conta de mim. Lendo uma crônica no Recanto das Letras, que falava da amizade da autora do texto com o rio da sua cidade, me fiz parte do enredo quando ela divagou sobre sua cumplicidade com o amigo passante: é assim a parceria que fazemos com as coisas que nos abstraem, nos acalmam, e nos tiram da realidade das coisas comuns.

Quando garoto, entrando na adolescência, o rio Açu foi meu parceiro, várias vezes, e dele trago as lembranças de tê-lo atravessado, em seus momentos permitidos, para ir à busca do alimento que ficava, na outra margem, distante cerca de dois quilômetros. Fazia-se necessário a sua travessia.

Algumas vezes ao encontrá-lo, perdia-me sentado em suas areias límpidas, e ficava a contemplá-lo, vendo-o sumir lá longe, até onde a vista alcançava: era enganado todas as vezes por ele, pois quando voltava o olhar para o mesmo lugar que havia iniciado a viagem, lá estava ele passando pelo mesmo local, com suas águas onduladas, claras e transparentes.

De onde começavam suas margens até suas águas, o caminho que tomava para ir ao seu encontro; as suas areias - pela manhã, frias, ao meio dia, escaldantes - atapetavam o caminho por onde eu passava, no local chamado "entre - rios": era o caminho também tomado pelos ribeirinhos que se instalavam do outro lado da margem.

Porém, eu gostava era de ficar sendo lavado por suas águas, que purificavam o meu corpo, numa espécie de batismo e me tiravam da fadiga da caminhada até lá: jogava-me de cabeça e via, no mergulho com os olhos abertos, passar pela minha frente, a vida pujante de seus domínios, em forma de seres pequenos, ágeis, ariscos, mas, muitas vezes, curiosos.

Suas margens eram ricas em alimentos: plantados e nascidos pela própria natureza. De lá se tirava, nas vazantes, a batata e a melancia que aplacava a fome; o capim que o gado se alimentava; do seu colo, o peixe.

Em suas cheias, o espetáculo se fazia presente de margens a margens. Essas totalmente tomadas pelas, agora, barrentas águas que traziam de tudo, por cima de suas ondas. Era desafiador chegar perto dele. De cima da ponte, perto da Adega, nos aventurávamos a pular em suas correntezas fortes, traiçoeiras, mas que nos levavam bem perto do local aonde íamos todas as vezes que tínhamos que atravessá-lo em época de mansidão.

Lembro-me de uma passagem especial, essa em que o momento se eterniza, onde a lembrança nunca deixa de trazer do passado, o aqui e o agora vivido: era uma tarde cedo, voltava eu da casa onde tinha ido saciar a fome, na companhia de uma jovem garota, da minha idade, que gostava do rio, assim como eu. Vínhamos e conversávamos. Na margem de lá do rio, esta em que a cidade do Açu distava uns dois quilômetros, sentamos em suas areias e lá trocamos juras de amor. Amor infantil, de meninos bestas, sonhadores, que achavam que o mundo lhes pertencia e que o amor era o sorriso dado em troca de um olhar curioso e convidativo; as tranças de seus cabelos e o olhar esgueirado de curiosidade me aliciavam a paixão.

Ali, vendo os pássaros em revoadas, em busca ainda do alimento do dia para levar para seus filhotes que estavam nas copas das árvores, beijei pela primeira vez. A imensidão daquelas areias se fez testemunha e apenas o barulho das asas dos pássaros e das águas do rio caudaloso que passava à nossa frente, bateram palmas para o ato inocente, porém belo, de dois enamorados que não sabiam o que era o prazer, mas sentiam o desejo de se doarem, num inocente selinho de promessas futuras.

Não vingou. Morreram ali mesmo as juras, os desejos futuros e, apenas ficou gravado na memória - de ambos - à tarde em que o mundo se abriu em sonhos para dois jovenzinhos, imaturos, que se deram pela primeira vez em acendimento.

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