Tema 182 - Primeiros anos
BIOGRAFIA
REFLEXÕES NOTURNAS
Valéria Vanda de Xavier Nunes

Ultimamente, Júlia estava se tornando uma pessoa bastante pensativa. Ela lembra que já havia lido em algum lugar, que quando se caminha para a idade mais avançada, ou seja, "dobrando o cabo da boa esperança", costuma-se perder um pouco de da altura, a visão começa a dar vexame e não se fazem mais o que se gosta com a mesma agilidade e, entre outros desconfortos, começa-se nesta fase também, a diminuir as horas de sono. Pode até não serem verdadeiras estas afirmações, mas que ultimamente o seu sono estava dando sinais de que andava alterado, isso com certeza é verdade. Ela não sabia se por causa da idade, do estresse do cotidiano, ou pela saudade que sentia de suas filhas, que viviam distante, o certo é, que já não dormia o "sono dos justos" como acontecia antes e eram nestas noites insones, quando ficava com a cabeça rodando de um lado para outro no travesseiro que as divagações começavam a povoar sua mente levando-a a questionamentos do tipo: "Quem sou eu? O que estou fazendo aqui neste mundo de Deus? Qual será a minha missão nesta vida? E se é certo que todos nós temos uma missão nesta vida - qual seria a minha"? Ela começava a achar que essa história de "crise de identidade" não é brincadeira de psicólogo não. Para ela, parecia que todos que chegavam a uma "certa" idade, começavam a se fazer estas perguntas.

Nestas noites de insônia, Julia às vezes era acometida de momentos de tristeza profunda e inexplicável. Uma inquietação constante se apossava dela e começava a divagar sobre a sua vida passada, presente e futura. Eram nestas horas que percebia como tinha sido privada de uma das melhores fases da vida que é a adolescência. Ficava se perguntando, como era possível uma pessoa se casar na idade que ela o havia feito. Júlia havia se casado aos dezessete anos. Pode uma coisa desta? Não por que estivesse grávida, não... não foi por isso, podem acreditar. A causa de seu casamento "apressado" foi um beijo roubado numa hora errada, e descoberto por seu pai, pode? Pois é, repito mais uma vez que pode. Com isto não lhe foi dada na época o direito de escolha. E então, ela tem inteira consciência de que sua vida sempre foi pautada em cima de muitos deveres e poucos direitos. Quando olha suas sobrinhas que hoje estão com dezesseis ou dezessete anos, acha-as umas gurias, umas menininhas, e fica lembrando que na idade delas, ela já era uma mulher casada e com todas as responsabilidades do novo "status". Como isso foi possível, ela não sabe dizer. Só sabe dizer que, a partir do momento que pulou da fase da infância para a fase adulta, perdeu de viver plenamente os anos "rebeldes". Perdeu o direito de ser uma jovem "inconseqüente", de dormir até não agüentar mais, de não ter responsabilidades maiores, a não ser a de estudar.

Júlia , a partir daquele momento, perdeu o direito de ter seus próprios amigos, de ir a uma festa, a uma praia, tomar um sorvete com uma colega, ir ao cinema com os amigos, dormir na casa da amiga íntima, poder namorar todos os rapazes, praticar o esporte favorito, ter seus segredinhos com as amigas, não precisar se preocupar com a casa, com o almoço, com a roupa lavada nem com a empregada, enfim, perdeu muito cedo o direito de ser "livre", e a liberdade, descobriu um pouco tarde demais, era a coisa melhor do mundo. Mas, Júlia é também consciente de que, "no momento em que você se une a alguém pra valer, tudo isso é deixado para trás, pois você não é mais você somente, você é apenas a "metade da laranja". Você deixa de ter sua própria vida e passa a dividir sua vida com alguém, de certa maneira, você se "aprisiona" a outra pessoa." Para Júlia, estar casada nesta idade, nos primeiros anos da adolescência - a fase mais bonita da vida - é como viver numa "gaiola dourada", com seus encantos, suas maravilhas, suas vantagens, mas que lá no fundo, você sabe que perdeu um pouco da sua identidade, e se não tiver cuidado, vai se deixando levar pelo outro até perdê-la de uma vez. Talvez por isso, por não ter vivido plenamente sua adolescência, hoje, como professora de adolescentes, muitas vezes, Júlia não consegue compreendê-los quando se mostram tão rebeldes, tão irrequietos, conversando demais uns com os outros, pois, não pode dizer: "já fui como eles." Talvez, lá no fundo, bem no inconsciente, ela sinta certa "inveja" desta despreocupação, desta rebeldia sadia e própria dos adolescentes e que lhe foi negado o direito de também possuir.

Hoje, se lhe fosse possível voltar atrás no tempo, e lhe fosse permitido escolher, lhes garanto que certamente ela não se casaria com dezesseis anos incompletos. Ah! Não...isso jamais. Não que ela e a família tenha "cometido" um erro, pois seu casamento dura até hoje e em vias de completar trinta e cinco anos, e ela pode dizer com certeza que é feliz. Mas, sinceramente, Júlia jamais aconselharia ninguém, a nenhuma adolescente no auge de seus dezesseis anos, nos dias atuais, a se aventurarem em um casamento quando têm diante de si todas as liberdades de escolhas que lhe são permitidas.

Júlia sempre disse que não se deve negar a ninguém o direito de viver plenamente as fases da vida: infância, adolescência e idade adulta. Para ela estas fases devem ser vividas por todos, em toda a sua plenitude. O mundo moderno oferece às mulheres toda a sorte de oportunidades e liberdade de escolhas, cabe a cada uma escolher entre a sua liberdade e o casamento o que para ela, hoje com a experiência que tem, seria a última das prioridades. Não que ela seja contra o casamento, isso não, mas, acha que toda mulher deve lutar pela sua independência financeira antes de qualquer outra coisa; nenhuma mulher deve depender de ninguém e nem mesmo do próprio marido para o que quer que seja. O casamento deve vir sim, mais tarde..., para coroar tudo, pois ninguém nasce para ficar sozinho, e a solidão, é um campo muito longo para ser atravessado sozinho.

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