Atualização 184 - Minicontos de natal
BIOGRAFIA
AS LUZES DE NATAL
Araceli Sobreira Benevides

O ano era 1976. O mês de dezembro havia chegado com suas pancadas de chuva no final das tardes. As manhãs, porém, eram ensolaradas e as férias recém-iniciadas tinham um ar diferente por conta do Natal.

Cada criança conhecida por mim, naquela época já havia feito um pedido. O meu era o de sempre: queria ver meu pai e queria uma bicicleta. Caso não conseguisse nenhum nem outro, poderia ser uma boneca. Tinha dez anos e já sabia que pedidos difíceis precisavam de concessões. Minha mãe sempre pedia para ter uma alternativa.

Um dia, fui levar um recado na casa de uma vizinha duas ruas acima de onde eu morava e, ao subir a ladeira de minha imensa rua, comecei a perceber que em todas as casas havia um enfeite na porta. Foi um achado. Não havia percebido isso antes.

Olhava para a esquerda e para a direita e, de repente, todas as casas estavam com pequenos adornos. Em uma, era uma bota de feltro, já em outra, havia uma estrela feita de papel laminado. Todos os tipos de guirlandas: com bolas coloridas, azevinhos, grandes laços, alguns até com luzes pisca-pisca.

- Como eu não tinha percebido isso antes? Já havia montado a árvore de Natal em casa, com minha mãe e minha irmã mais nova, mas sequer notara que as casas também eram ornamentadas em sua entrada.

Raramente saía pelas ruas a não ser quando ia para a escola. Em dezembro, ficava em casa, vendo tv, brincando de várias coisas, mas nada havia me despertado para esses enfeites. Naquele dia, resolvi, então, percorrer a rua inteira onde morava a tal Sra. Lourdes. Subi e desci umas 10 ruas, para desespero de minha mãe, que não previra tanta demora em minha saída:

- Onde você andou, menina? Pensei que tivesse sido atropelada, que demora foi essa? Deu o recado?

- Recado? Ah, sim, dei, mãe - respondi, meio atordoada com tanta pergunta em meio à minha descoberta.

E com ela, surgiram também os números: comecei a contar os enfeites das casas e a andar pelas ruas, sempre procurando mais enfeites. Virou mania: as casas tinham uma pontuação simples, cada uma valia um ponto. Se houvesse uma árvore iluminando a calçada ou a frente da casa, isso valia 5 pontos. No primeiro ano, devido a minha pouca vivência como andarilha, somei uns 300 pontos, no máximo. Mas com os passeios ao centro da cidade para comprar a roupa de Natal, essa pontuação começou a crescer, pois as lojas da cidade eram totalmente enfeitadas e a pontuação inicial não dava conta do que eu via.

De repente, São Paulo inteira era um enfeite só! Tudo ficava iluminado à noite e essa parte era a que mais me cativava pelos anos em que mantive essa mania.

Às vezes, ninguém via o que eu fazia. Às vezes, alguém notava e perguntava o que eu tanto contava. Houve até quem pensasse que eu estava rezando. O auge dessa mania deu-se quando viajei pela primeira vez. Era para conhecer um orfanato em São José dos Campos. Alguns amigos espíritas organizaram uma festa para as crianças e eu e minhas irmãs fomos para conhecer a realidade delas (segundo os dizeres de minha mãe). O trajeto tornou-se um cálculo infinito. Havia conhecido as indústrias e como o Natal poderia ser magnânimo em luzes!

O orfanato ficava à beira de um morro. Como iríamos passar o fim de semana para distribuir os presentes para as crianças, passamos a noite em uma casa anexa ao orfanato. Lá de cima, víamos montanhas e uma infinidade de luzes piscando nas casas dos arredores. Em algumas, podíamos ver o brilho colorido dos pisca-piscas. E meu hobby (segundo minha amiga Thaís Helena) tornava-se mais intenso, pois tinha que decidir entre o que era a luz de um poste daquela que era iluminação natalina.

Ficamos até umas nove da noite sentados à beira dos degraus da grande construção que abrigava as crianças. Um dos "tios" tocava violão para nos distrair. Meus olhos, encantados com as montanhas, brincavam de olhar as casas morro abaixo e as estrelas, exageradamente brilhantes.

Quando reconhecia uma luz natalina, contava baixinho, refazendo um trabalho mnemônico para trazer de volta o último número. Quando me perdia, ficava super chateada, mas ia me lembrando da pontuação maior ou menor que havia atribuído a um prédio ou casa e do percurso que fizera. Se me lembrasse de um prédio inteiro iluminado e tivesse atribuído uns trezentos pontos, sabia que estava em 2.415 ou 3.580 porque no Natal anterior não tinha de 5.000 pontos! Era uma lógica absurda, mas lá estava eu, numa bela montanha, a fazer meus cálculos mentais, quando um pequeno menino me olhou e disse:

- Tia, o que cê tá fazendo?

- Contando as luzes de Natal - disse, achando graça de ser chamada de tia.

- Hum?

Apontei para a árvore iluminada em frente ao orfanato e disse, mesmo sabendo que o menino não teria mais do que cinco anos e talvez nem pudesse entender a minha mania:

- Eu fico contando quantos enfeites de papai-noel existem no mundo, entendeu?

O menino ficou me olhando, pensativo e com um sotaque bem carregado, puxando os erres, falou baixinho:

- Ah, entendo, sim. Eu também faço isso, só que conto estrelas. Uma vez aqui, alguém disse que eu tinha caído do céu, que eu era uma estrelinha. Aí, conto estrelas. Um dia fiquei olhando tanto pra elas, queria ver se achava minha mãe e meu pai, aí comecei contando uma estrelinha, duas estrelinhas. Olha lá, tia, tem um mooonte de estrelinhas...

Ele falou tão inocentemente, apontando um dedinho gordo em direção ao céu, que meus olhos se encantaram com as estrelas também. Cheguei até a acreditar que ele era de fato um menino-estrela, um menino-luz.

Pouco tempo depois, a tal da realidade que a minha mãe tanto falava caiu em cheio sobre meus olhos. Soube por um dos instrutores do orfanato que o menino, que se chamava Antônio Marcos, o Totonho, havia sido encontrado, no Centro de São Paulo, em uma caixa de sapato quando era bebê e estava no orfanato desde então. Não deixei de contar os enfeites natalinos até completar dezessete anos, quando parei de vez, parecia que algo perdera o sentido. Estava viajando com meu pai, no trecho Rio-Espírito Santo, quando, de repente, parei e não contei mais.

Ele me olhou, enquanto dirigia seu caminhão, perguntando curiosamente:

- Parou mesmo?!

Os anos passaram, a mania de contar enfeite de Natal desapareceu. Entretanto, no mês de dezembro, sempre que olho as ruas iluminadas e paro para sentir o efeito que elas provocam em mim, lembro-me dos olhos pretos de Totonho, dizendo ser uma estrela, uma estrela de Natal.

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