Atualização 185 - Tema Livre
BIOGRAFIA
MEGA-SENA
E. Rohde

A primeira reação foi a melhor. Depois veio a paranóia. E se roubassem o bilhete? E se me sequestrassem? E se aparecessem amigos interesseiros? E se me assaltassem? Onde é que eu ia deixar o bilhete até a segunda-feira?

Essa paranóia durou até eu ir na casa lotérica recolher meu prêmio. Me cagava de medo. E se o cara pegasse o cartão, escondesse atrás do balcão e sumisse? É bilhete ao portador. Qualquer um poderia me roubar. Inclusive o funcionário encarregado de entregar o prêmio. Como é que eu me protegia?

Depois passou. Passou assim que eu cheguei na casa lotérica. Minha paranóia foi engolida pela complexidade dos procedimentos burocráticos. Da casa lotérica me mandaram para a Caixa Econômica. Na Caixa me tomaram o bilhete, me deram um recibo e me mandaram abrir conta, tirar CPF, contratar advogado e contador. Enfim, nos primeiros meses trabalhei como nunca tinha trabalhado na vida. Recebi o prêmio na minha conta e saí administrando. Tinha reuniões diárias com o gerente da Caixa. Tinha que investir, escolher ações, títulos, distribuir riscos. Saía do banco e ia me encontrar com o corretor de imóveis. Tijolo é o investimento mais sólido, me diziam. Terminava o dia com o contador. Já não tinha mais tempo para a família.

Chegava em casa tarde da noite e minha mulher reclamava que estava entediada, que eu nunca estava com ela, que ela passava o dia entre a ginástica e a esteticista e para quê? As crianças não iam à escola, não queriam ir. O meu guri maior dizia: se o pai não trabalha, por que eu tenho que ir para a escola? Se somos ricos, para que estudar? A mãe ainda dava razão, tinha medo de sequestro. Era para esse ambiente que eu voltava de noite. De manhã me levantava e começava tudo de novo. Não reclamava. Sabia que era uma questão de tempo, que era uma transição. Pouco a pouco as coisas se estabilizariam, os investimentos se encaminhariam, tudo começaria a funcionar por conta própria e eu poderia começar a gozar os frutos da fortuna. Era só comprar o barco, decorar o apartamento novo, tirar visto de residente na Suiça, comprar um chalé nos Alpes, e daí sim, começar a aproveitar. Isso durou todo o primeiro ano.

O segundo ano foi mais tranquilo. Tinha dia que eu passava no barco, ia dormir na primeira classe da Air France, acordava para esquiar nas pistas de Chamonix e no dia seguinte já estava em algum resort na Polinésia. Em cada lugar com uma mulher diferente, nenhuma delas a minha.

Nessa época já não encontrava o contador com tanta frequência.Acho que falei com ele umas três ou quatro vezes em todo o ano, contando os telefonemas. Ele falava de taxas de juros, retorno de investimento, erosão de capital, valor presente líquido e outras coisas que eu não precisava entender.

Foi lá pelo início do terceiro ano que o castelo começou a desmoronar. Descobri que a minha mulher estava dilapidando o nosso patrimônio, comprando bens em nome de parentes dela e de parentes de parentes. A manutenção do barco estava custando mais do que o previsto, mais do que deveria custar.

O divórcio foi caro. Minha ex-mulher ficou com a metade do que tinha sobrado - além daquilo que tinha roubado - e a outra metade tive que dividir com advogados. Uma dona apareceu com um filho dizendo que era meu. Mais despesa de advogado, e uma pensão para pagar. Maldito DNA.

Eu já não conseguia viver com menos do que tinha me acostumado, e se os dividendos não chegavam para pagar a conta, eu comia o capital e tentava não pensar muito nisso. Comprava cocaína para não pensar. Cocaína com ágio. Tudo o que eu comprava, pagava com ágio.

Torrei todos os investimentos de papel, os títulos, as ações, os fundos e os dólares. Desses era fácil me desfazer. Quando passei para os imóveis é que sofri um pouco. A primeira vez que tive que vender um terreno para fazer saldo na conta bancária doeu muito. Vendi às pressas, à primeira oferta, muito abaixo do valor de mercado. Organizei uma festa no barco para não pensar. Depois me acostumei e os outros vendi sem dor.

Quando perdi o barco e me mudei para um apartamento de dois quartos na zona norte a coisa não teve mais graça. Me aconselharam a procurar emprego. Mas quem dá emprego a um cinquentão que não trabalha há anos e ainda por cima é alcoolatra e drogado? Tentei apelar para a ex-mulher, invoquei o amor pelos filhos, mas ela não podia me ajudar. Tinham passado a perna nela, o namorado fugiu com todos os bens que ela tinha posto no nome dele. Ela ficou sem nada, como eu. Não sei se me senti vingado ou duplamente lesado.

Olhando para trás, posso dizer que ganhar na loteria foi um bem. Fiz loucuras nos primeiros anos, mas hoje estou bem. Tenho o meu cachorro fiel. Tenho amigos. Me dão cigarro e comida. Naquele bar ali sempre me dão café. Lá adiante tem uma senhora que se eu esperar a hora de fechar o restaurante, ela me dá um prato de comida. Estou bem. Ninguém acredita. Você não me acredita, não é? Acham que sou louco, me tratam como louco. Enquanto me acharem um louco divertido, não tenho do que reclamar. Estou bem, estou bem.

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